Um recorde português

Correia da Fonseca

Foi graças a um dos ca­nais por­tu­gueses ditos in­for­ma­tivos, isto é, só aces­sí­veis a quem não se con­forma com re­ceber no seu te­le­visor apenas os quatro ca­nais de sinal aberto, que os te­les­pec­ta­dores pu­deram co­nhecer a no­tícia. Acon­teceu na RTP In­for­mação, du­rante um de­bate em que ex­cep­ci­o­nal­mente o tema não era o fu­tebol, e aí fi­cámos a saber que o nosso País é de­tentor de um re­corde eu­ropeu pouco ou nada co­nhe­cido. É claro que já sa­bíamos que Por­tugal e os por­tu­gueses têm vindo a des­tacar-se no quadro in­ter­na­ci­onal por muitos e va­ri­ados feitos, al­guns óp­timos, ou­tros nem tanto: são por­tu­gueses o me­lhor fu­te­bo­lista do mundo e o me­lhor trei­nador mun­dial da mesma arte, foi por­tu­guês o des­co­bridor do ca­minho po­lí­tico para a pre­si­dência da Co­missão Eu­ro­peia, há dois ou talvez mais por­tu­gueses no topo do FMI após es­calas na go­ver­nação local, coisas assim e de­certo ou­tras de di­fe­rente ín­dole. A agora re­ve­lada, porém, tem um outro sabor e um es­pe­cial sig­ni­fi­cado: Por­tugal é de­tentor do Re­corde Eu­ropeu da Ro­ta­ti­vi­dade La­boral. Para quem tenha dú­vidas acerca do que isto sig­ni­fica, convém que nos apres­semos a des­cascar a fór­mula e a ver o que tem dentro: este re­corde sig­ni­fica que os tra­ba­lha­dores por­tu­gueses são, entre todos os que tra­ba­lham na Eu­ropa, os que mais estão sob o risco imi­nente de serem des­pe­didos e subs­ti­tuídos por ca­ma­radas que também não se de­mo­rarão muito tempo na­quele posto de tra­balho e por sua vez serão subs­ti­tuídos por ou­tros tra­ba­lha­dores. Trata-se, pois, de um ro­dopio um pouco si­nistro mas que de­certo ten­derá a be­ne­fi­ciar al­guém: os em­pre­ga­dores (pa­lavra que agora é de uso uti­lizar em vez de «em­pre­sá­rios» e mais ainda em vez de «pa­trões», pois isto do ma­nu­seio vo­ca­bular tem im­por­tância po­lí­tica) que assim se vêem li­vres de com­pro­missos a médio ou longo prazo com a mão-de-obra que ar­re­gi­mentam.

Sim­ples­mente viver

En­tende-se a in­tenção, mas convém que se en­tendam também as con­sequên­cias deste «má­ximo eu­ropeu», como se diria em lin­guajar des­por­tivo. Sig­ni­fica que, mais do que quais­quer ou­tros entre os seus ca­ma­radas eu­ro­peus, os tra­ba­lha­dores por­tu­gueses estão, por ca­rência de es­ta­bi­li­dade la­boral, im­pe­didos de pla­ne­arem as suas vidas, isto é, de terem fi­lhos que não es­tejam em cons­tante pe­rigo de mi­séria, de terem uma ha­bi­tação que não im­plique um per­ma­nente risco de des­pejo, até de so­nharem com uma ve­lhice com a tran­qui­li­dade mí­nima que uma vida de tra­balho de­veria ga­rantir. É claro que a ob­tenção deste re­corde tem também con­sequên­cias que ul­tra­passam a área fa­mi­liar: tem o se­nhor Pre­si­dente da Re­pú­blica an­dado muito an­gus­tiado com a cha­mada questão de­mo­grá­fica, com o de­se­qui­lí­brio etário da po­pu­lação por­tu­guesa; apelou a se­nhora mi­nistra das Fi­nanças, apa­ren­te­mente ins­pi­rada por an­tiquís­simas pa­la­vras do Se­nhor, a que os jo­vens por­tu­gueses se «mul­ti­pli­cassem»; mas é claro que nem os muito jo­vens nem os que já não o sejam tanto podem dar-se ao luxo, à ver­da­deira ex­tra­va­gância, de en­co­men­darem fi­lhos para mais cedo ou mais tarde os verem co­lo­cados não na roda dos en­jei­tados, como era de uso nos ve­lhos tempos, mas sim no es­pe­cial tor­mento que é a Ro­ta­ti­vi­dade La­boral. Em ver­dade, não há ter­ceira via neste como nou­tros casos: ou man­temos a posse deste re­corde eu­ropeu que con­fere a Por­tugal uma tris­tís­sima no­to­ri­e­dade, que em ver­dade é in­dício da des­graça de um povo de­certo para be­ne­fício de al­guém, ou de­vol­vemos aos tra­ba­lha­dores por­tu­gueses as con­di­ções de es­ta­bi­li­dade la­boral que lhes per­mitam sim­ples­mente viver em con­di­ções mí­nimas de ver­da­deira hu­ma­ni­dade. Sa­bemos quem op­tará pela ma­nu­tenção do re­corde. Sa­bemos também que o seu aban­dono é con­dição fun­da­mental para a dig­ni­dade de um país in­de­pen­dente que de­fenda os seus ci­da­dãos da cons­tante ameaça do de­ses­pero. Trata-se, pois, de re­jeitar o tris­tís­simo re­corde. O que para isso há a fazer, e com a ade­quada ur­gência, sabe-o de­certo quem in­tegra a classe tra­ba­lha­dora por­tu­guesa.




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