Comentário

Desfigurem-se realidade e história

João Pimenta Lopes

É prática comum das instituições europeias condicionar a realidade e a história ao serviço dos interesses económicos e políticos da UE. As abordagens são diversas, mas o fio condutor, comum. Como pano de fundo, e regra geral, a evocação exacerbada de valores que nos são caros, como a paz, a democracia, a liberdade, a igualdade, os direitos humanos. Os ditos princípios basilares e fundadores que este projecto de integração capitalista apropriou como seus. Partindo daqui, a apresentação da UE como autêntico paladino impoluto, um farol de luz pura que tem o «bíblico» desígnio de evangelizar – nem que pela força – os países da sua periferia e mais além, às suas doutrinas, arrogando-se assim o direito e o dever de «ensinar» e «cultivar» aqueles valores nos países do terceiro mundo. Sempre com particular entusiasmo e vigor intervencionista para com aqueles que, desalinhados com os interesses da UE e do imperialismo, os contrariam e obstaculizam à concretização dos seus objectivos.

E se a realidade compromete e embaraça a sua natureza de classe, distorça-se, até que a imagem que dela se projecte, se alinhe com a versão que importa veicular. São disso exemplos recentes a situação na Ucrânia, o conflito com a Rússia, a questão das migrações, a Síria, a Venezuela, a cumplicidade com os crimes de Israel…

Para a maior parte destes temas é possível encontrar, fora da imprensa convencional e com moderada facilidade, a informação que permita uma imagem imparcial e possibilite uma avaliação objectiva da realidade. Porém, situações existem que, de tão distantes da nossa realidade, dificultam a recolha de elementos neutros, facilitando a permeabilidade à mensagem veiculada, como sendo absolutamente verdadeira, sobretudo se difundidas por tão «sérias» instituições como o PE e suas mui amplas e oportunas maiorias.

Um exemplo paradigmático desta estratégia de evidente parcialidade e enviesamento da realidade foi a aprovação de uma resolução(1) sobre o Burundi na última sessão plenária do ano.

A resolução trata de alimentar a visão negativa que se pretende transmitir da situação no país: a degradação da segurança, uso da força militar, execuções sumárias, um presidente que se impõe no poder, detenções e violações de direitos humanos. E logo segue com as habituais recomendações, condenações e apelos à ingerência sobre um país soberano, «legitimadas» pela imagem retratada de um regime autoritário com um ditador à cabeça.

Mas conhecendo a estratégia do capital de transformar a realidade em seu favor, compete-nos sempre aprofundar o conhecimento da realidade que nos é vendida.

Um artigo(2) de Maio de 2015 descreve uma realidade bem distinta, sem negligenciar, como o faz a resolução do PE, os enquadramentos histórico, territorial, cultural, social e económico que a caracterizam. Retrata um presidente e um partido com forte apoio e mandato popular, que desempenharam um papel determinante na resolução do conflito que opunha um regime militar de minoria tutsi, apoiado pelo Ocidente, a uma maioria hútu, perseguida e massacrada, alcançando um acordo em 2000 que permitiria a consolidação democrática do país em 2010. Regista os níveis de desenvolvimento, lentos é certo, mas constantes e direccionados para o reforço da capacidade produtiva, aumento das exportações, melhoria das condições de vida da população, com medidas para a educação e redução da pobreza. Refere o papel da «oposição» no país apoiada pelo Ocidente, com ligações ao contrabando e acções terroristas. Salienta a questão de fundo, a tentativa de desanexar uma parte do território daquele e outros países, facilitando o controlo e exploração de uma região rica em minérios ao domínio do capital europeu e norte-americano.

A denúncia dos interesses monopolistas e colonialistas que o artigo denuncia, recomendam toda a prudência na análise da situação naquele e noutros países, sem precipitações de posicionamento que a direita e a social-democracia impõem, e a que alguma esquerda tende a acolher.

A realidade do Burundi poderá ser de curta relevância para os desafios que hoje se nos colocam em Portugal. Mas constitui oportuno exemplo da velha prática de construir uma caricatura, desfigurando realidade e história, e fazer uso dessa caricatura para atacar os que se atravessam aos interesses do capital. E essa prática tanto serve lá como cá.

 

(1) http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?type=MOTION&reference=P8-RC-2015-1348&language=PT

(2)http://www.globalresearch.ca/are-the-us-and-the-eu-sponsoring-terrorism-in-burundi/5449562

 



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