A manipulação como vício

Correia da Fonseca

Foi no pas­sado do­mingo, no de­curso do serão te­le­vi­sivo que se se­guiu ime­di­a­ta­mente ao co­nhe­ci­mento das pri­meiras son­da­gens. Como era pre­vi­sível, desde cedo ficou clara a pos­si­bi­li­dade da vi­tória à pri­meira volta de Mar­celo Re­belo de Sousa. É certo que a es­cassa vo­tação con­se­guida pelos dois can­di­datos apoi­ados por fi­guras do PS po­deria dar algum re­go­zijo aos pêès­se­daicos em geral e, em es­pe­cial, aos que fazem o seu tra­balho nos es­tú­dios de te­le­visão, mas foi óbvio que esse re­con­forto não bas­tava para lhes sa­ciar o vício da ma­ni­pu­lação que apa­ren­te­mente se tornou a sua mais forte ca­rac­te­rís­tica pro­fis­si­onal, fe­nó­meno cuja gra­vi­dade se agrava quando ocorre na ope­ra­dora pú­blica de TV, paga pelos ci­da­dãos de di­reita ou de es­querda. Assim, os te­les­pec­ta­dores foram im­pe­didos de ou­virem in­te­gral­mente o co­men­tário pro­fe­rido por qual­quer co­mu­nista, por muito que ele tenha sido con­vi­dado pre­ci­sa­mente para co­mentar o acto elei­toral e os seus re­sul­tados a partir do es­túdio: sempre surgiu um pre­texto para o in­ter­romper, para acudir com ur­gência a um qual­quer pe­daço de re­por­tagem al­gures, para de facto exercer al­guma cen­sura «jus­ti­fi­cável». É de es­perar, na­tu­ral­mente, que esse tão es­for­çado tra­balho, essa tão óbvia vo­cação para a função de co­lo­cador de mor­daças in­vi­sí­veis mas per­cep­tí­veis, seja re­co­nhe­cido e re­com­pen­sado no plano das car­reiras pro­fis­si­o­nais. Como já aqui foi re­gis­tado não há muito tempo, «Roma» já paga a trai­dores; não es­pan­tará que pague também a ser­vi­dores de re­levo menor.

O triste «show» da noite

É claro, e nin­guém o ne­gará, que os re­sul­tados al­can­çados por Edgar Silva fi­caram aquém do de­se­jado e do que era le­gí­timo es­perar. Esse facto, porém, im­plica que lhe bus­quemos as causas e, assim, que nestas co­lunas, por obri­gação es­pe­ci­al­mente atentas ao que vai acon­te­cendo nos ecrãs dos nossos te­le­vi­sores, re­gis­temos a per­ma­nente cru­zada an­ti­co­mu­nista que na TV por­tu­guesa vai de­cor­rendo dia após dia, toda ela feita de dis­tor­ções e de mai­ores ou me­nores ca­lú­nias ex­plí­citas ou im­plí­citas, por vezes ani­madas por uma trans­pa­rente hos­ti­li­dade por parte de um ou outro dos pro­fis­si­o­nais que lhes dão voz e imagem. No serão do pas­sado do­mingo, a ac­tu­ação do quase em­ble­má­tico José Ro­dri­gues dos Santos avi­zi­nhou-se do ca­ri­ca­tural: o su­jeito exibia-se num es­tado de grande ex­ci­tação pe­rante a ex­pec­ta­tiva de a vo­tação em Edgar Silva ser su­pe­rada pela vo­tação em Vi­to­rino da Silva, Tino de Rans. De poucos em poucos mi­nutos, à che­gada de mais re­sul­tados par­ciais vindos so­bre­tudo do Norte, José Ro­dri­gues dos Santos em­ban­dei­rava em arco, di­gamos assim, es­bra­ce­java numa es­pécie de fo­gue­tório ges­tual. Quando, com a che­gada de mais e mais subs­tan­ciais re­sul­tados, Edgar Silva passou para a frente de Tino, como seria ex­pec­tável e normal, o Santos calou a in­for­mação du­rante largos mi­nutos numa clara exi­bição de mau perder, má-fé e mau pro­fis­si­o­na­lismo. Há gente assim, é claro, que não se en­xerga, como dizem os bra­si­leiros. Na ver­dade, o mi­nús­culo «show» de José Ro­dri­gues dos Santos foi o mais ri­dí­culo apon­ta­mento da noite, mas era evi­dente que o homem não se con­tinha. Teve, porém, um mé­rito: ao nível da ca­ri­ca­tura, foi a de­núncia da mi­li­tância an­ti­co­mu­nista que in­tegra a res­pi­ração quo­ti­diana da te­le­visão por­tu­guesa. Que de­certo não ex­plica tudo, mas que se­gu­ra­mente ex­plica al­guma coisa.




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