Os dias amargos e os salteadores de sonhos

Domingos Lobo

A As­so­ci­ação de Jor­na­listas e Ho­mens de Le­tras do Porto (AJHLP), tem vindo a pu­blicar, com in­vulgar pe­ri­o­di­ci­dade, uma série de textos de in­con­tor­nável valor li­te­rário, me­mo­ri­a­lís­tico e his­tó­rico, em edi­ções que primam pelo rigor de aná­lise e con­tex­tu­a­li­zação dos con­teúdos. Li­vros que têm uma marca, uma iden­ti­dade que os dis­tingue e sin­gu­la­riza face à vo­la­ti­li­dade, fas­quia de exi­gência e mer­can­ti­li­zação que ca­rac­te­riza o grosso do nosso mer­cado li­vreiro.

A AJHLP tem vindo a pu­blicar um no­tável con­junto de tí­tulos, (po­esia, conto, no­vela, en­saio) em for­matos de fácil ma­nejo (a co­lecção Me­mória Pe­re­cível, p.ex.), con­ce­bendo pa­ra­le­la­mente ou­tras edi­ções, num per­ma­nente de­safio de busca e de in­ves­ti­mento na nossa me­mória co­lec­tiva; tí­tulos gi­zados para uma lei­tura mais re­co­lhida e de­mo­rada, quer pela im­por­tância te­má­tica e con­cep­tual que esses li­vros exibem, en­quanto abor­dagem me­tó­dica e pros­pec­tiva nos ter­ri­tó­rios do en­saio li­te­rário, da his­tória e do tes­te­munho cí­vico, quer ainda quanto à re­le­vância dos nomes que con­cebem e as­sinam esses textos. Li­vros que, para além da sua função de ins­tru­mento cul­tural de ca­pital im­por­tância, primam pela ex­ce­lência do gra­fismo e da apli­cação de uma ver­tente cri­a­tiva, já rara entre nós, dos ma­te­riais uti­li­zados na sua con­cepção.

Tem Cui­dado, Meu Amor – Cartas de Prisão de Vir­gínia Moura e An­tónio Lobão Vital. Or­ga­ni­zação, apre­sen­tação e notas de Ma­nuela Es­pí­rito Santo.

O fas­cismo luso não exerceu o seu poder cri­mi­noso apenas im­pe­dindo a vida, a sua fruição plena, os mo­vi­mentos, o pen­sa­mento, a re­a­li­zação in­di­vi­dual e co­lec­tiva da es­ma­ga­dora mai­oria do povo; os seus ten­tá­culos não se­vi­ci­avam apenas o corpo ou os sen­tidos das suas ví­timas (co­mu­nistas, so­bre­tudo); os seus crimes foram co­me­tidos, em muitos casos, sobre os afectos, os hu­manos ín­timos cla­mores, vi­gi­ando, cen­su­rando, pu­nindo de forma ab­jecta e sór­dida, um olhar, um beijo, um gesto de ter­nura mais fre­mente. O fas­cismo, este nosso, beato e cí­nico, queria-nos in­ver­te­brados, frouxos, so­nâm­bulos, dis­po­ní­veis para a plena con­su­mação da sua usura. O Amor, a Cul­tura, a In­te­li­gência, eram-lhes modos de Ser in­su­por­tá­veis, pe­ri­gosos para o sis­tema e, por isso, porque in­ci­diam sobre as ca­pa­ci­dades mais lí­dimas, cog­ni­tivas da nossa con­dição, tidos como sub­ver­sivos e, na be­a­tí­fica ló­gica da bar­bárie, pas­sí­veis de re­pressão exem­plar, pe­na­li­zados a rigor. Foi o re­frear dos es­tí­mulos sen­so­riais, cri­ando um nor­ma­tivo com­por­ta­mental ali­cer­çado na ig­no­rância e na ren­dição, o cerco sobre os afectos e os ima­gi­ná­rios, a cas­tração sis­te­má­tica das emo­ções, apenas con­sen­tidas no fu­tebol ou nas tou­radas, como es­ca­pa­tória cir­cuns­tan­cial, a be­a­ti­tude un­gida como mo­delo, a es­tra­ti­fi­cação clas­sista, as formas de pe­ne­tração subtil e ar­di­losa sobre os ta­lentos e os so­nhos, os ins­tru­mentos de do­mínio com que o fas­cismo con­se­guiu tornar mais longo, sagaz e ma­nente, ins­ti­gando no sub­cons­ci­ente co­lec­tivo esse magma do con­for­mismo – si­nais ainda ac­tu­antes, vi­sí­veis no nosso te­cido so­cial, e que as forças mais re­tró­gradas ainda ma­no­bram com hábil per­fídia, vol­vidos mais de 40 anos sobre Abril.

É dessa in­sídia sobre o ín­timo, sobre a vi­gi­lante pata da cen­sura fas­cista, que as cartas de prisão es­critas por Vir­gínia Moura ao seu com­pa­nheiro An­tónio Lobão Vital nos dizem e que este livro re­produz de forma ir­re­pre­en­sível, jun­tando ao fac-sí­mile das cartas a vi­o­lência (apenas uma das muitas so­fridas pelo casal às mãos dos car­ce­reiros) de um ca­rimbo dos es­birros, que desse modo qui­seram deixar, ma­cu­lando as mis­sivas, a sua pe­rene, ino­mi­nável marca. Mais do que a im­pos­si­bi­li­dade de es­crever o que, nas cir­cuns­tân­cias, essas cartas po­de­riam dizer e de­nun­ciar, esta vasta epis­to­lo­grafia traça o re­trato de uma mu­lher atenta às sin­gu­la­ri­dades da sua con­dição de re­sis­tente an­ti­fas­cista, atenta ao con­tínuo pulsar do tempo e dos si­nais que esses ru­mores lhe trazem às grades do catre; atenta aos seus, ao ma­rido a quem deixa re­cados sobre a saúde, os cães, os cui­dados a ter com a horta, notas sobre os li­vros que lhe per­mitem ler, os jor­nais, o frio que faz no pátio da prisão; o re­des­co­brir de ou­tras formas de re­sis­tência em si­tu­a­ções li­mite. O amor a com­bater o medo, ci­frado, o im­pon­de­rável, os la­nhos de um per­curso; in­cer­tezas sobre as de­ci­sões do Tri­bunal Ple­nário, a in­qui­e­tação sobre os de­síg­nios de um poder in­justo e ar­bi­trário, em per­ma­nente des­vario.

Diz-nos Ma­nuela Es­pí­rito Santo na pro­fusa e in­for­mada nota in­tro­du­tória: Por ra­zões de ci­da­dania, Vir­gínia Moura e o seu com­pa­nheiro An­tónio Lobão Vital vá­rias vezes são presos. Não cedem, não temem, não ra­cham. Fiéis, sempre, a um ideal comum e ao pro­fundo amor que os unia. As cartas que agora se pu­blicam, es­critas na prisão entre 1951 e 1957, re­velam a in­fâmia do tempo da di­ta­dura. Tudo de­vassa, até os sen­ti­mentos mais ín­timos.

São essas marcas do ar­bí­trio, da so­ne­gação do es­paço ín­timo de res­pi­ração, que as cartas de Vir­gínia e Vital am­pla­mente trans­portam, numa lin­guagem em que nunca se agita o fan­tasma do de­sâ­nimo, da ce­dência, da ren­dição: ter razão é um modo de ale­gria que so­bre­leva todos os medos, todas as an­gús­tias. E o amor, a ac­tiva cum­pli­ci­dade exis­tente entre Vir­gínia Moura e An­tónio Lobão Vital, ajudou a su­portar tudo o resto.

A or­ga­ni­za­dora deste es­pólio, traça, igual­mente, o re­trato de Vir­gínia e Vital, os per­cursos da sua ac­ti­vi­dade cí­vica, longe das mas­morras pi­descas: as ter­tú­lias nos cafés Primus ou na Bra­si­leira, no Porto, que se­riam “a mais pe­quena re­pú­blica so­ci­a­lista do mundo”, ter­tú­lias de que fi­zeram parte per­so­na­li­dades como Artur Santos Silva (pai), Ar­ménio Losa, An­tónio Ma­cedo, Ma­nuel Aze­vedo, Mário Cal Brandão, Pa­pi­niano Carlos; o nas­ci­mento da re­vista Sol Nas­cente, que teve a pri­meira re­dacção em casa do casal; a ac­tiva par­ti­ci­pação de ambos na can­di­da­tura à Pre­si­dência da Re­pú­blica de Ruy Luís Gomes; a ac­ti­vi­dade cul­tural e de com­bate ao fas­cismo, o tra­balho, a vida, os modos de cum­prir, de en­frentar os dias si­ti­ados.

Beco Sal­te­ador, de Faure da Rosa

É muito es­ti­mu­lante, para quantos lêem e ad­miram a obra fic­ci­onal de Faure da Rosa, ao qual o Museu do Ne­o­re­a­lismo, por al­tura do cen­te­nário do seu nas­ci­mento (1912), de­dicou uma bem es­tru­tu­rada, pe­da­gó­gica ex­po­sição sobre a sua Vida e Obra, a pu­bli­cação de um dos mais in­te­res­santes contos do autor de Nós e os Ou­tros.

Na co­lecção Me­mória Pe­re­cível, acom­pa­nhado de um cum­pli­ciário pre­fácio de José Ma­nuel Mendes, a AJHLP dá à es­tampa, a partir de um dac­ti­los­crito cons­tante do acervo da As­so­ci­ação, o conto Beco Sal­te­ador da­tado, na versão fac­si­mi­lada que acom­panha o vo­lume, de Agosto de 1947, conto que Faure da Rosa, in­te­graria, em 1962, no livro A Ci­dade e a Pla­nície.

Beco é um sal­te­ador de es­trada, um va­ga­bundo que rouba, ou mata se a fome o acossar mais do que o corpo su­porta, pelo ins­tinto pri­mevo da so­bre­vi­vência, um anti-herói sem causas nem sen­ti­mentos de culpa. Cer­cado pela GNR (e aqui, por opostos mo­tivos, lem­bramos o Palma de Seara de Vento, a sua luta re­sis­tente contra a in­jus­tiça e a pre­po­tência), Beco rende-se à fome, forma úl­tima de sub­missão, e pelo sono: E ficou, todo imerso em gozo, o corpo inerte, se­dento de re­pouso – a dormir.

Do pre­fácio de José Ma­nuel Mendes, su­blinho: Seja este mo­mento o es­tí­mulo para a re­pu­bli­cação do corpus in­te­gral de Faure da Rosa, um autor no­tável a que im­porta re­gressar. A co­meçar pela lei­tura deste conto que nos de­volve o tempo em que os sal­te­a­dores ti­nham ou­tros nomes e nos as­sal­tavam em pleno sono, rou­bando-nos a voz e os so­nhos.

 



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