Cultura, o que fazer

Manuel Augusto Araújo

Um Mi­nis­tério da Cul­tura (MC) cons­tran­gido por um or­ça­mento quase ir­ri­sório como o que lhe foi atri­buído no OE 2016, equi­pa­rável ao de 2015, fica con­de­nado a uma quase ir­re­le­vância mesmo que a di­fe­rença com que a cul­tura é en­ca­rada pelo ac­tual Go­verno seja abis­sal­mente di­fe­rente da do que lhe an­te­cedeu. Por me­lhores que sejam as in­ten­ções, por mais ex­ce­lente que seja o ti­tular da pasta tem sempre pela frente esse muro quase in­trans­po­nível. Quase porque muito pode ser feito quase sem di­nheiro, dado o es­tado em es­com­bros das es­tru­turas do MC, ví­timas de su­ces­sivos go­vernos, dos do PS aos do PSD/​CDS, que com re­formas ditas es­tru­tu­rais li­qui­daram ins­ti­tutos e di­rec­ções em fu­sões sem sen­tido e com Prace e Premac os foram exau­rindo de pes­soal téc­nico qua­li­fi­cado.

Atingiu-se uma si­tu­ação em que é ne­ces­sário, ur­gente e fun­da­mental re­or­ga­nizar o Mi­nis­tério. Traçar as grandes li­nhas para im­ple­mentar po­lí­ticas sec­to­riais, fa­zendo um sério ba­lanço crí­tico do pas­sado re­cente para es­ta­be­lecer ca­mi­nhos fu­turos, mesmo que o fu­turo não seja ime­diato. Sem uma es­tra­tégia clara e bem de­fi­nida o MC li­mitar-se-á a gerir, me­lhor ou pior, o pre­sente, na­ve­gando entre es­co­lhos, mas sem ho­ri­zonte.

Uma pri­meira me­dida seria de­li­mitar cla­ra­mente duas es­feras de acção. Uma com o foco no Pa­tri­mónio Cul­tural, outra nas Artes Con­tem­po­râ­neas. Dois pi­lares que, nunca es­tan­ques, fi­ca­riam com maior au­to­nomia e mesmo es­pe­ci­a­li­zação para gerir os imensos pro­blemas em que essas duas áreas se de­batem ac­tu­al­mente. Duas es­tru­turas ver­ti­cais que se en­rai­za­riam numa rede ho­ri­zontal que co­briria todo o ter­ri­tório, re­gião a re­gião. Isso im­pli­caria a re­forma total das ac­tuais Di­rec­ções Re­gi­o­nais de Cul­tura, hoje uma quase ir­re­le­vância. Te­riam que ser um ac­tivo elo de li­gação entre o Poder Cen­tral, as es­tru­turas in­ter­mé­dias CCDR e Áreas Me­tro­po­li­tanas, o Poder Local. Seria também um forte elo de li­gação com as­so­ci­a­ções e co­lec­ti­vi­dades de cul­tura. Um mo­delo de es­tru­tura que fa­vo­re­ceria a des­cen­tra­li­zação po­si­tiva contra o ex­ces­sivo cen­tra­lismo que tem sido acen­tuado com as re­formas que se tem feito, so­bre­tudo desde 1980 com o au­mento ex­po­nen­cial do apa­relho de Es­tado na Cul­tura, re­for­çando um cen­tra­lismo ad­mi­nis­tra­tivo que nem umas vagas des­con­cen­tra­ções ilude.

Com uma es­tru­tura bem pen­sada, di­nâ­mica e or­ga­ni­zada fi­caria ga­ran­tida a cir­cu­lação de pro­jectos e ideias, in­cen­tivar-se-ia a par­ti­ci­pação ci­dadã. A ac­ti­vi­dade cul­tural po­ten­ci­aria o seu papel trans­for­mador. Pa­ra­le­la­mente teria o efeito im­por­tante de nor­ma­lizar as muitas so­bre­po­si­ções e du­pli­ca­ções tanto de com­pe­tên­cias como de ta­refas que hoje existem, mas quase não co­e­xistem, re­gi­onal e cen­tral­mente.

Fi­ca­riam também sal­va­guar­dadas as au­to­no­mias entre os di­fe­rentes agentes cul­tu­rais sem que essas au­to­no­mias se atro­pe­lassem. Um factor de mútuo in­cen­tivo ao tra­balho em prol do bem comum que é a sal­va­guarda da nossa iden­ti­dade cul­tural, a que está re­pre­sen­tada pelo pa­tri­mónio cul­tural, a que se cons­trói pelas prá­ticas cul­tu­rais ac­tuais.

Von­tade po­lí­tica

Tudo isto pode ser feito quase sem di­nheiro. O seu motor é von­tade po­lí­tica e visão es­tra­té­gica. Im­plica uma re­es­tru­tu­ração pro­funda dos or­ga­nismos do Mi­nis­tério da Cul­tura, apren­dendo com as vir­tudes e os erros feitos desde a Re­vo­lução de Abril. Re­vi­sando todo o corpo le­gis­la­tivo pro­du­zido, o que foi e é vá­lido e o que é e se re­velou ne­fasto.

Uma pro­funda re­flexão po­lí­tica, ne­ces­sária e ur­gente, para que devem de­mo­cra­ti­ca­mente ser con­vo­cados os agentes cul­tu­rais, as CCDR e Áreas Me­tro­po­li­tanas, As­so­ci­a­ções de Mu­ni­cí­pios e ou­tras es­tru­turas do Es­tado que têm re­lação di­recta ou mesmo in­di­recta com a cul­tura, como são os mi­nis­té­rios da Edu­cação, do Am­bi­ente (Or­de­na­mento do Ter­ri­tório), da Eco­nomia (Tu­rismo), das Au­tar­quias Lo­cais (se­cre­taria do Mi­nistro-Ad­junto) e da Mo­der­ni­zação Ad­mi­nis­tra­tiva. É uma pro­posta de um vasto fórum que po­derá não ser fácil de con­vocar e até de gerir, mas que é fun­da­mental para traçar as grandes li­nhas de uma es­tra­tégia cul­tural co­e­rente e para a re­fun­dação de um Con­selho Na­ci­onal de Cul­tura, ac­tu­al­mente ino­pe­rante. Pode de­morar tempo, mas pode e deve con­tri­buir, com vi­sões até ines­pe­radas, para essa re­forma que se afi­gura im­pres­cin­dível.

Com o MC no seu es­tado ac­tual, com um or­ça­mento para apagar al­guns fogos en­quanto a flo­resta con­tinua a arder, o tempo que se gasta, mas não se perde, com esse de­bate tem o ob­jec­tivo, como já se re­feriu, de tornar a cul­tura uma força agre­ga­dora e trans­for­ma­dora, que cons­trói um mo­delo de MC para o tornar mais efec­ti­va­mente ac­tu­ante e des­cen­tra­li­zado. Um de­bate com ca­rácter de ur­gência en­quanto se con­tinua a lutar por atingir o grande ob­jec­tivo do 1% para a Cul­tura o que dará fi­nal­mente os meios de ac­tu­ação e afir­mação para uma po­lí­tica cul­tural de efec­tiva de­mo­cra­ti­zação da Cul­tura.

Estas são al­gumas ideias que, sem ne­nhuma cer­teza ab­so­luta, co­locam hi­pó­teses de tra­balho que se con­si­deram nu­cle­ares para uma outra Cul­tura, re­or­ga­ni­zando um Mi­nis­tério quase em ruínas, onde muitas vezes se con­funde cul­tura com artes, apro­vei­tando as opor­tu­ni­dades que a sua ac­tual quase ir­re­le­vância pro­por­ciona. O or­ça­mento é es­casso, mas não jus­ti­fica tudo até porque há ou­tras me­didas quase sem custos ou de custos muito re­du­zidos que se pode pôr ime­di­a­ta­mente em prá­tica. As­sunto para outro mo­mento.

 



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