O final do ditador
Faltariam dois ou três minutos para a meia-noite da passada segunda-feira quando a RTP2 iniciou a transmissão do programa que anunciara para meia-hora antes. Ainda assim, porém, é de crer que muitos telespectadores tenham esperado esse tempo, até que teriam esperado algum mais, aceitando cortarem nas horas do repouso nocturno e arrancarem ainda sonolentos para as tarefas diárias na manhã seguinte. Motivava-os a prevista estreia de uma série de programas que prometia não ser uma série qualquer até pelo seu título, «Estórias do Tempo da Outra Senhora». Como claramente se entende, a «outra senhora» é neste caso uma forma digamos que popular de designar o fascismo, e bem se pode admitir que a escolha do título tenha sido (também) motivada pela intenção de satirizar a conhecida relutância de muitos em designarem o fascismo português pela palavra certa, fascismo, numa curiosa tentativa de ocultarem o carácter do regime derrubado em Abril. De qualquer modo, também é certo que a programação da televisão portuguesa, quer da operadora pública quer das estações privadas, não abunda em programas que venham contar aos portugueses as «estórias» que caracterizaram esses anos terríveis, pelo que é compreensível que testemunhos acerca desse período possam contar com um telepúblico atento, se não ávido, até capaz de sacrificar horas de sono para mitigar esse défice de informação. Complementarmente e no que se refere aos telespectadores mais atentos e informados, ocorre que «Estórias do Tempo da Outra Senhora» vem assinada por Edgar Feldman, autor de relevante trabalho anterior acerca do não muito distante passado português. O que é explicação complementar para que o já referido atraso de meia-hora, acrescido ao horário já tardio para que foi programada a transmissão desta primeira «estória», não tivesse conduzido à desistência muitos telespectadores.
Os cuidadores imprevisíveis
Esta «estória» inicial conduziu-nos de regresso aos últimos dias da agonia de Salazar, então já há quase dois anos reduzido a uma existência radicalmente diminuída após o acidente doméstico divulgado como sendo o da queda de uma cadeira de repouso. Mas o dado que tornaria a «estória» mais curiosa, digamos assim, é que o ditador, então já numa fase sem qualquer esperança de retorno ou mesmo de prolongada sobrevivência, terá estado nesses derradeiro período confiado aos cuidados de médicos comunistas, ele, que sempre tivera o comunismo e os comunistas como alvos supremos do seu ódio e dos crimes por ele patrocinados. Todo o programa consistiu numa conversa havida na pequena esplanada privada de um restaurante modesto e aparentemente antigo, significativamente chamado «Cantinho da Amizade», e liderada por um dos médicos que cuidaram de Salazar nesses dias finais. Se todos, quase todos ou apenas um ou outro desses médicos eram comunistas ou simplesmente democratas e antifascistas, ficou por provar, nem parece que essa prova fosse necessária e, além do mais, fácil: como bem se compreende, a adesão ao PCP não era nesses tempos feita mediante o preenchimento de papéis em troca de um cartão vermelho para trazer na carteira. Mas a evocação desses dias, feita sobretudo pelo dr. Manuel do Souto, teve algum sabor que terá compensado os telespectadores persistentes pela perda de algum tempo de sono. Resta agora saber se as próximas «estórias» que constituirão a série terão o mesmo ou ainda maior interesse, na certeza de que, de qualquer modo, a informação prestada pela TV acerca do fascismo português permanece escandalosamente insuficiente, para não dizer que rara. Essa insuficiência não será um pecado que brada aos céus, mas é seguramente uma omissão que brada ao respeito pela memória dos que sacrificaram tudo para que, um dia, Abril pudesse acontecer.