Como Hillary roubou o Nevada

António Santos

Os que vêem no re­gime dos EUA um exemplo de de­mo­cracia gostam de apontar para as es­pec­ta­cu­lares elei­ções pri­má­rias do par­tido, único e bi­cé­falo, do grande ca­pital e dizer: «Estão a ver? Isto é que é li­ber­dade a sério!». É por­tanto uma pena que ne­nhum (!) órgão de co­mu­ni­cação so­cial por­tu­guês se tenha dado ao tra­balho de acom­pa­nhar a Con­venção De­mo­crá­tica do Es­tado do Ne­vada que, reu­nida este sá­bado, ofe­receu ao mundo um exemplo pa­ra­dig­má­tico de como fun­ciona a de­mo­cracia ca­pi­ta­lista.

A his­tória co­meça como a can­di­da­tura de Hil­lary Clinton. Com um for­mi­dável or­ça­mento de quatro mi­lhões de dó­lares e todo o apa­relho do par­tido, a cam­panha da se­cre­tária de Es­tado não au­gu­rava mais do que uma co­ração he­re­di­tária. De qual­quer forma, pelo sim pelo não, o Par­tido De­mo­crata, pela mão do se­nador Harry Reid, pôs em marcha um plano, em con­luio com os donos dos ca­sinos, para ga­rantir, a qual­quer custo, a vi­tória de Hil­lary. Para além de cen­tenas de de­nún­cias de ir­re­gu­la­ri­dades du­rante o es­cru­tínio, os pa­trões dos ca­sinos ela­bo­raram listas com os nomes dos tra­ba­lha­dores au­to­ri­zados a ir votar.

Em Fe­ve­reiro, porém, quando os caucus fa­laram, a van­tagem de Clinton sobre Bernie San­ders era de menos de cinco por cento. Então, em Abril, quando o Con­dado de Clark e a enorme Las Vegas vo­taram, o se­nador do Ver­mont deu a volta ao re­sul­tado e ar­rancou mais qua­tro­centos de­le­gados do que Clinton.

San­ders, um auto-de­no­mi­nado «so­ci­a­lista» e por­tador de um pro­grama de pro­gresso so­cial, já havia ar­re­ba­tado 19 es­tados, o equi­va­lente à di­mensão da União Eu­ro­peia e es­tava agora a um passo de vencer no Ne­vada, com três vezes a di­mensão de Por­tugal. Os mi­li­o­ná­rios por de­trás de Clinton es­tavam as­sus­tados. Sa­biam que o que es­tava em causa não era o «so­ci­a­lismo» de Bernie nem tão pouco a quase ga­ran­tida no­me­ação de Clinton, mas as im­pre­vi­sí­veis con­sequên­cias po­lí­ticas de so­frer mais uma der­rota pe­rante um mo­vi­mento de massas de que a classe tra­ba­lha­dora fez caixa-de-res­so­nância. Era pre­ciso fazer al­guma coisa mas, desta vez, en­cher o fa­bu­loso Hil­lary Vic­tory Fund com mi­lhões de dó­lares podia não chegar. Era tempo de de­mons­trar porque é que a esta de­mo­cracia se chama bur­guesa.

 

De­mo­cracia à me­dida de classe

A con­tagem dos votos, no sá­bado, co­meçou meia hora antes do pre­visto, com a pre­si­dente es­ta­dual do Par­tido De­mo­crata, Ro­berta Lange, a fe­char-se na sala so­zinha, com os bo­le­tins de voto. Quando saiu, anun­ciou à con­venção que aca­bara de de­cidir uni­la­te­ral­mente a al­te­ração das re­gras de dis­tri­buição dos de­le­gados: «Uma de­cisão da pre­si­dente não pode ser de­ba­tida; não po­demos ser de­sa­fi­ados!», de­clarou a di­ri­gente de­mo­crata pe­rante uma mul­tidão de ac­ti­vistas in­cré­dulos.

As novas re­gras, in­ven­tadas mi­nutos antes, pos­si­bi­li­taram que Hil­lary Clinton, com 1298 re­pre­sen­tantes eleitos, ele­gesse mais de­le­gados do que San­ders, com 1613 eleitos. Feitas as contas, Hil­lary roubou sete dos 12 de­le­gados dis­pu­tados.

Quando Ro­berta Lange re­cusou a dis­cussão e vo­tação de todas as pro­postas para repor a le­ga­li­dade, os apupos ra­pi­da­mente deram lugar aos gritos e às pa­la­vras de ordem. A pre­si­dente anun­ciou o fim da con­venção, mas os de­le­gados não ar­re­daram pé. Dentro de mi­nutos, uma linha de po­lí­cias ar­mados se­pa­rava os con­gres­sistas da mesa e uma voz saída de dentro de um ca­pa­cete sin­te­ti­zava assim, com cris­ta­lina cla­reza e para além da apa­rência e da for­ma­li­dade, as leis in­ternas e es­sen­ciais da de­mo­cracia bur­guesa: «Por ordem da pre­si­dente, a con­venção acabou. Quem não for ime­di­a­ta­mente para casa será de­tido». Ou­viram bem?




Mais artigos de: Internacional

América Latina resiste

De­pu­tados de es­querda de vá­rios países da Amé­rica La­tina par­ti­ci­param, ao início da noite de an­te­ontem, 17, numa emo­tiva sessão de so­li­da­ri­e­dade pro­mo­vida pelo CPPC, a CGTP-IN e a As­so­ci­ação de Ami­zade Por­tugal-Cuba.

 

«O povo vencerá»

O Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês con­dena a ten­ta­tiva de der­rubar a le­gí­tima pre­si­dente bra­si­leira mas confia que, «com a so­li­da­ri­e­dade in­ter­na­ci­o­na­lista», os bra­si­leiros serão ca­pazes de travar o golpe.