Tá bem, abelha

Henrique Custódio

O en­sino pú­blico uni­versal e gra­tuito em todos os seus graus é um im­pe­ra­tivo cons­ti­tu­ci­onal fun­dador, en­for­mando um dos ali­cerces do Por­tugal de­mo­crá­tico saído da Re­vo­lução de Abril. Dis­cutir isto é um li­near acto an­ti­de­mo­crá­tico e deve ser tra­tado como tal.

O en­sino pri­vado – que é um ne­gócio como outro qual­quer e, por­tanto, tem como ob­jec­tivo cen­tral a ob­tenção de lu­cros –, apro­veitou a opor­tu­ni­dade que se lhe abriu (no início dos anos 80) nos lo­cais onde havia ca­rência de es­colas pú­blicas, ce­le­brando «con­tratos de as­so­ci­ação» com o Es­tado para su­prir essas fa­lhas, en­quanto elas se re­gis­tarem.

Daí o in­ves­ti­mento na cons­trução de novas ou re­qua­li­fi­cação de an­tigas es­colas ao longo dos anos, vi­sando su­prir as ca­rên­cias que deram origem aos con­tratos de as­so­ci­ação e alargar a rede pú­blica.

No go­verno Passos/​Portas, o mi­nistro da Edu­cação, Nuno Crato, mudou o es­ta­tuto do En­sino Par­ti­cular e Co­o­pe­ra­tivo em 2013, per­mi­tindo aos co­lé­gios e si­mi­lares fazer acordos com o Es­tado mesmo onde exista oferta pú­blica dis­po­nível e pró­xima – o que con­traria fron­tal­mente o pre­ceito cons­ti­tu­ci­onal de es­cola pú­blica e o es­ta­tuído sobre os ob­jec­tivos dos con­tratos de as­so­ci­ação – e, no final do seu man­dato, Crato ce­le­brou con­tratos por um pe­ríodo de três anos, con­su­mando uma ile­ga­li­dade e pro­jec­tando-a para o fu­turo, acom­pa­nhada duma gazua ide­o­ló­gica também ilegal e de di­reita: a do «di­reito de es­co­lher a es­cola dos fi­lhos».

Uma gazua ilegal, não porque os pais não possam es­co­lher a es­cola onde querem meter os fi­lhos – podem fazê-lo, desde que a pa­guem, caso seja pri­vada, a não ser onde a es­cola pú­blica não tem con­di­ções para aco­lher esses alunos –, mas uma fa­lácia não con­sen­tânea com o pre­ceito cons­ti­tu­ci­onal do en­sino uni­versal e gra­tuito e que PSD e CDS, apos­tados em fo­mentar uma «guerra», in­sistem em brandir. Uma fa­lácia e uma hi­po­crisia tanto mais graves quanto, em Junho de 2015, o Mi­nis­tério da Edu­cação pre­si­dido então por Nuno Crato re­co­nhecia sem so­fismas que «qual­quer as­sumpção de com­pro­missos pluri-anuais que obrigue o Es­tado a fazer con­tratos quando não há ca­rência é ilegal».

Se­jamos claros: este «não pro­blema» dos con­tratos de as­so­ci­ação re­sulta dum des­mando le­gis­la­tivo pra­ti­cado pelo mi­nistro Crato em fim de man­dato e quando já es­tava com um pé fora do go­verno.

In­vocar esse des­mando como «com­pro­misso do Es­tado» é tão gro­tesco como achar que le­gis­lação apro­vada por um go­verno seja ina­mo­vível pelo Exe­cu­tivo se­guinte, mesmo que tal le­gis­lação haja sido apro­vada ao ar­repio de normas cons­ti­tu­ci­o­nais e fun­da­mentos da Re­pú­blica de­mo­crá­tica.

Daí a falsa po­lé­mica sobre «o di­reito à es­colha da es­cola», que só existe no nosso or­de­na­mento ju­rí­dico-cons­ti­tu­ci­onal para quem se dis­ponha a pagar os preços e custos das es­colas pri­vadas.

Que é o que, pelos vistos, al­guns não querem: pagar.

Mas querem que o di­nheiro pú­blico lhes pague os gostos pri­vados.

Tá bem, abelha.




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