Comentário

Pela boca morre o peixe

Miguel Viegas

O TTIP, tra­tado de livre co­mércio entre a União Eu­ro­peia e os Es­tados Unidos, está neste mo­mento em plena fase de ne­go­ci­ação. Ao con­trário do CETA, tra­tado se­me­lhante entre a União Eu­ro­peia e o Ca­nadá que foi ne­go­ciado e con­cluído sem qual­quer dis­cussão pú­blica, o TTIP tem mo­ti­vado grande de­bate e muita luta. Esta «subtil» di­fe­rença não se deve a qual­quer mu­dança de es­tilo da Co­missão Eu­ro­peia. Deve-se apenas à cir­cuns­tância de ter ha­vido uma fuga de in­for­mação da qual re­sultou a di­vul­gação pú­blica não pre­vista de um con­junto de do­cu­mentos entre os quais o man­dato de ne­go­ci­ação apro­vado pelo con­selho para a Co­missão Eu­ro­peia ne­go­ciar o acordo com os Es­tados Unidos. Ainda assim, não se pense que tem sido fácil es­cru­tinar o pro­cesso que já vai na13.ª ronda ne­go­cial. Não temos acesso nem às actas nem às po­si­ções da Co­missão Eu­ro­peia re­la­ti­va­mente a cada um dos 24 ca­pí­tulos do acordo. O que nos chega às mãos são re­sumos vagos sobre os avanços al­can­çados, que visam acima de tudo tran­qui­lizar a opi­nião pú­blica e des­mo­bi­lizar a luta.

Desta forma, a in­for­mação mais re­le­vante para se per­ceber as reais in­ten­ções da Co­missão Eu­ro­peia surge através de fugas de in­for­mação, ou então de de­cla­ra­ções avulsas de res­pon­sá­veis, quando lhes foge à boca para a ver­dade. Quando ou­vimos o dis­curso ofi­cial ou os do­cu­mentos dis­po­ní­veis da Co­missão Eu­ro­peia sobre o TTIP, tudo pa­rece paz e tran­qui­li­dade. Dizem as ins­ti­tui­ções eu­ro­peias que o me­ca­nismo de re­so­lução de li­tí­gios, que con­sistia na pri­meira versão, num tri­bunal ar­bi­trário pri­vado ao ser­viço das mul­ti­na­ci­o­nais, e que mo­tivou fortes pro­testos das po­pu­la­ções e até de al­guns go­vernos, afinal vai ter juízos no­me­ados pelos países, as­su­mindo um ca­ráter pú­blico. Mas isto não muda em nada a es­sência do pro­blema. As mul­ti­na­ci­o­nais vão con­ti­nuar a poder ques­ti­onar as de­ci­sões so­be­ranas dos go­vernos na­ci­o­nais. Mas o pa­leio não fica por aqui. Re­la­ti­va­mente às normas de hi­giene e se­gu­rança ali­mentar, a Co­missão Eu­ro­peia volta à carga: podem os povos eu­ro­peus ficar des­can­sados, porque os nossos pa­drões não serão se­quer be­lis­cados. Re­la­ti­va­mente aos ser­viços pú­blicos, a mesma in­tru­jice, ou seja, cada go­verno po­derá mantê-los, omi­tindo-se o facto deste tra­tado abrir por com­pleto o acesso aos cha­mados mer­cados pú­blicos, me­ca­nismo através do qual, in­fe­liz­mente, grande parte dos or­ga­nismos pú­blicos, in­cluindo câ­maras mu­ni­ci­pais, con­tra­tu­a­liza a pres­tação do ser­viço pú­blico através de con­cursos.

Foi do meio deste dis­curso anes­te­si­ante que sur­giram re­cen­te­mente duas re­ve­la­ções im­pre­vistas que deitam por terra todo o es­forço das ins­ti­tui­ções eu­ro­peias para em­be­lezar este tra­tado. A pri­meira tem a ver com a di­vul­gação, por parte da Gre­en­peace, de mais de du­zentas pá­ginas de do­cu­mentos da Co­missão Eu­ro­peia onde fica clara a se­cun­da­ri­zação das ques­tões am­bi­en­tais face aos ob­jec­tivos de com­pleta li­be­ra­li­zação das trocas co­mer­ciais. O se­gundo epi­sódio prende-se com uma en­tre­vista de Ig­nacio Garcia Ber­cero, ne­go­ci­ador-chefe da Co­missão Eu­ro­peia para o TTIP, pu­bli­cada no jornal Pú­blico a 30 de Maio úl­timo, com uma ti­rada que ci­tamos na ín­tegra para não haver dú­vidas. Pe­rante uma questão sobre se­gu­rança ali­mentar o ne­go­ci­ador-chefe res­ponde:

«Fran­ca­mente, acho que as po­lí­ticas es­tritas em ma­téria de im­por­tação de trans­gé­nicos, ou do “prin­cípio de pre­caução” em ma­téria das hor­monas no tra­ta­mento das carnes, pa­recem-me le­gí­timas. Mas também há agri­cul­tores eu­ro­peus que acham que as normas em ma­téria de au­to­ri­zação de hor­monas, de bem-estar animal, ou de trans­gé­nicos im­plicam custos que co­locam as em­presas eu­ro­peias numa po­sição com­pe­ti­tiva di­fícil. Pode ser ver­dade para al­guns sec­tores, como a pe­cuária, e temos de levar em conta essas di­fe­rentes sen­si­bi­li­dades.»

Fi­camos es­cla­re­cidos sobre as ver­da­deiras in­ten­ções da Co­missão Eu­ro­peia e sobre ne­ces­si­dade de con­ti­nu­armos mo­bi­li­zados para a luta que vai en­du­recer. É caso para dizer, pela boca morre o peixe. Se é certo que existe um certo im­passe ao nível das ne­go­ci­a­ções, e que até surgem de­cla­ra­ções que chegam a pôr em causa a con­clusão das ne­go­ci­a­ções, não é menos certo que o grande ca­pital está for­te­mente em­pe­nhado no su­cesso destas ne­go­ci­a­ções, con­tando para isso com os ha­bi­tuais par­tidos da di­reita e da so­cial-de­mo­cracia. Re­corde-se que o TTIP, in­cluindo o me­ca­nismo de re­so­lução de li­tígio ainda na sua for­mu­lação ini­cial, foi de­fen­dido com unhas e dentes por Vital Mo­reira, então re­lator deste dos­sier no an­te­rior man­dato, tal como é de­fen­dido agora por Silva Pe­reira ac­tual re­lator do Par­tido So­ci­a­lista.

 



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