A serpente

Correia da Fonseca

Estes têm sido, na te­le­visão e não só, os dias do fu­tebol, o que con­cilia o ape­tite das gentes com o ob­jec­tivo apa­rente se não efec­tivo, e aliás já an­tigo, de in­jectar na ge­ne­ra­li­dade dos ci­da­dãos o ape­tite pelo golo em vez da ape­tência por uma so­ci­e­dade di­fe­rente e me­lhor. Em pro­vável re­sul­tado dessa cir­cuns­tância terão pas­sado des­per­ce­bidas, ou quase, certas no­tí­cias me­re­ce­doras de atenção, al­gumas mi­nús­culas mas sig­ni­fi­ca­tivas, como a em­proada afir­mação da drª.Maria Luís de com ela a União Eu­ro­peia agiria com mais gentis modos, ou­tras com mais efec­tivo peso, e entre estas a no­tícia de que volta a ser pos­sível o êxito do as­salto da ex­trema-di­reita à pre­si­dência da re­pú­blica aus­tríaca. Como de­certo lem­bramos, nas elei­ções re­cen­te­mente ha­vidas foi pro­cla­mada a vi­tória do can­di­dato dito eco­lo­gista e pelo menos de re­la­tiva es­querda, Ale­xander van der Bellen, apenas por uma es­treita margem re­sul­tante da con­tagem dos votos por cor­res­pon­dência. Uma de­cisão do tri­bunal cons­ti­tu­ci­onal aus­tríaco veio agora impor a re­a­li­zação de novas elei­ções por pro­vá­veis ir­re­gu­la­ri­dades na con­tagem de votos, o que volta a tornar pos­sível a vi­tória de um su­jeito de nome Nor­bert von Hofer, cri­a­tura co­nhe­cida por ser de di­reita ex­trema e «na­ci­o­na­lista». Sa­bemos o que de facto sig­ni­fica esta qua­li­fi­cação de «na­ci­o­na­lista» pelo menos em lu­gares onde o nazi-fas­cismo floriu em todo o seu fulgor. Também por cá os fas­cistas de má e si­nistra me­mória os­ten­tavam de bom grado o ró­tulo de «na­ci­o­na­listas», sendo le­gí­timo supor que os pides e seus ar­re­dores se as­su­miam como muito «na­ci­o­na­listas» antes, du­rante e de­pois das suas prá­ticas tor­ci­o­ná­rias. Quanto à Áus­tria, país sim­pá­tico das valsas e do Da­núbio, é for­çoso ad­mitir que tem al­gumas feias ver­rugas no seu ima­gi­nário rosto: não apenas foi na Áus­tria, na pe­quena ci­dade de Braunau, que nasceu Adolfo Hi­tler, como também eram aus­tríacos muitos ou­tros ca­va­lheiros de pés­simo cur­rí­culo, entre eles Kurt Wal­deim, co-res­pon­sável pelo as­sas­sínio de ju­deus, ci­ganos e ou­tros pri­si­o­neiros entre 1941 e 45, que chegou a ser se­cre­tário-geral da ONU graças à dis­tracção de quem devia estar atento e foi ainda, pos­te­ri­or­mente, eleito pre­si­dente da Áus­tria. Num for­mato mais re­du­zido, re­corde-se ainda que foi um pre­si­dente aus­tríaco que há anos, numa re­cepção a Ca­vaco Silva em vi­sita ao país, teve a gros­seria de fazer con­si­de­ra­ções de­sa­gra­dá­veis acerca do nosso País, o que aliás Ca­vaco ouviu em sub­misso e hu­mi­lhado si­lêncio. E ainda se diz que de Es­panha é que não vêm bons ventos…

Porque já ras­tejam

O im­por­tante, porém, é que a even­tual con­quista da pre­si­dência aus­tríaca pela ex­trema-di­reita, e con­quista que será/​seria re­sul­tante do voto po­pular, se en­cai­xaria numa es­pécie de «puzzle» eu­ropeu cuja imagem final tende a ser uma Eu­ropa do­mi­nada por uma di­reita que ainda não se atreve a rei­vin­dicar a des­cen­dência di­recta do nazi-fas­cismo eu­ropeu dos anos 22 (marcha mus­so­li­niana sobre Roma) a 45 do sé­culo pas­sado, mas coin­cide com ele em muitos pontos fun­da­men­tais, de­sig­na­da­mente no ódio e com­bate a qual­quer sinal de ver­da­deira es­querda que possa aflorar. É a re­a­pa­rição das ser­pentes de que há anos nos falou Ingmar Bergman no seu «O ovo da ser­pente», filme que, mais do que falar-nos da si­tu­ação alemã an­te­rior a 33, nos pre­venia quanto ao fu­turo. A questão é que não basta ter ven­cido a ser­pente, é ne­ces­sário des­truir os ovos por ela dei­xados nos lu­gares por onde passou ou teve in­fluência. Mais e me­lhor: é in­dis­pen­sável des­truir também as con­di­ções que per­mi­tiram o nas­ci­mento da ser­pente e a sua pro­cri­ação. Hoje, por essa Eu­ropa fora, aper­ce­bemo-nos de que muitos ovos já se abriram e que ser­pentes ainda jo­vens mas já muito pe­ri­gosas, por vezes dis­si­mu­ladas e nou­tras vezes quase as­su­midas em toda a sua ín­dole, ras­tejam para as áreas de poder. Em­bora possa não o pa­recer, talvez este seja, mais que «bre­xits» e si­mi­lares, o grande pro­blema da Eu­ropa 2016.




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