Vasco de Magalhães-Vilhena

Um comunista filósofo

Paulo Antunes

Ce­lebra-se este ano o cen­te­nário de nas­ci­mento do ca­ma­rada Vasco de Ma­ga­lhães-Vi­lhena que nasceu a 5 de Julho de 1916 e fa­leceu a 3 de Agosto de 1993. Foi uma das fi­guras de maior re­levo cul­tural no Por­tugal do sé­culo XX e ficou co­nhe­cido in­ter­na­ci­o­nal­mente como pro­e­mi­nente fi­ló­sofo mar­xista por­tu­guês. A sua vida di­vidiu-se entre uma longa e con­victa mi­li­tância, nunca dei­xando de par­ti­cipar na ac­ti­vi­dade po­lí­tica, e uma re­no­mada car­reira aca­dé­mica. Soube sempre ligar ambas.

Desde muito jovem, co­meçou a fre­quentar a re­dacção da Seara Nova, já pu­bli­cava nessa re­vista em 1935, ainda antes de en­trar para a Fa­cul­dade. Lá con­viveu com An­tónio Sérgio, fi­gura de ele­vado ga­ba­rito in­te­lec­tual e de opo­sição ao re­gime fas­cista, que o viria a marcar e com quem man­teve um in­tenso diá­logo fi­lo­só­fico ao longo de dé­cadas, tendo sido seu ad­mi­rador, mas também crí­tico con­se­quente.

Ma­ga­lhães-Vi­lhena es­tudou nas fa­cul­dades de Le­tras de Lisboa e de Coimbra, li­cen­ci­ando-se nesta úl­tima, em 1939, no curso de Ci­ên­cias His­tó­rico-Fi­lo­só­ficas. No mesmo ano viu ser pu­bli­cada a sua tese: Pro­gresso. His­tória Breve de Uma Ideia, que veio a cons­ti­tuir, sem à época se poder afirmar ex­pli­ci­ta­mente como tal, a pri­meira obra fi­lo­só­fica mar­xista es­crita em Por­tugal. Foi as­sis­tente na Fa­cul­dade de Le­tras de Coimbra de 1942 a 1945. Acabou for­çado a aban­donar a do­cência na Fa­cul­dade neste úl­timo ano, onde en­si­nava His­tória da Fi­lo­sofia An­tiga.

De se­guida, exilou-se em Paris onde viria a passar 30 anos. Como bol­seiro do go­verno francês, pre­parou o seu dou­to­ra­mento tendo ob­tido, em 1949 na Sor­bonne, o grau de Doc­teur en Let­tres. Em 1952, viu as suas teses – Le pro­blème de So­crate  e So­crate et la lé­gende pla­to­ni­ci­enne – serem pu­bli­cadas pelas Presses Uni­ver­si­taires de France. Dois anos de­pois re­cebeu o prémio da As­so­ci­a­tion des Études Grec­ques. E até 1974 foi in­ves­ti­gador na Sor­bonne – no Centre Na­ti­onal de la Re­cherche Sci­en­ti­fique, de 1947 a 1967 e, no Centre de Re­cher­ches sur la Pensée An­tique, de 1946 a 1974. Con­tri­buiria ainda nou­tros Cen­tros de in­ves­ti­gação e em di­versas re­vistas in­ter­na­ci­o­nais.

Ma­ga­lhães-Vi­lhena tornou-se mi­li­tante do Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês em 1932, ini­ci­ando-se, desde muito jovem, na opo­sição ao fas­cismo. Desde 1950 par­ti­ci­pava na ac­ti­vi­dade do Con­selho Mun­dial da Paz. Quanto ao exílio, foi pri­mei­ra­mente «vo­lun­tário», mas a partir dos anos 60 tornou-se com­pul­sivo – Ma­ga­lhães-Vi­lhena fora proi­bido de voltar a Por­tugal ame­a­çado de prisão pela sua par­ti­ci­pação no Mo­vi­mento Mun­dial da Paz.

Fi­ló­sofo e com­ba­tente

O re­gresso a Por­tugal ocor­reria nos úl­timos dias de Abril de 1974, no cha­mado «avião da li­ber­dade» che­gado a Lisboa vindo de Paris. Após a ale­gria imensa que o 25 de Abril es­pa­lhara, vol­taria a França para mos­trar às co­mu­ni­dades por­tu­guesas as ima­gens da Re­vo­lução dos Cravos, para que estas vissem com os seus pró­prios olhos e sou­bessem poder voltar.

Apenas em 1975 viria a ser rein­te­grado como pro­fessor ca­te­drá­tico na Fa­cul­dade de Le­tras da Uni­ver­si­dade de Lisboa. Em 1976 par­ti­cipa na or­ga­ni­zação do XI Con­gresso da In­ter­na­ti­o­nale Hegel-Ge­sells­chaft da qual fazia parte e onde pro­fere a con­fe­rência de aber­tura. Acabou por se apo­sentar, por ra­zões de saúde, em 1979. Per­ten­ceria também ao Con­selho da Pre­si­dência da an­tiga As­so­ci­ação Por­tugal-URSS (ac­tual As­so­ci­ação Por­tu­guesa de Ami­zade e Co­o­pe­ração Iúri Ga­gárin), da qual foi um dos fun­da­dores.

Em vida foi agra­ciado, por exemplo, com a me­dalha de ouro Lé­nine em 1975, atri­buída pelo Pre­si­dium do So­viete Su­premo da URSS; mais tarde, em 1979, re­cebeu a me­dalha da Liga da Ami­zade entre os povos ofe­re­cida pela RDA; e em Junho de 1985 foi agra­ciado pelo Pre­si­dente da Re­pú­blica com a co­menda da ordem da li­ber­dade.

Deixou uma ex­tensa bi­bli­o­grafia, por exemplo: Pa­no­rama do pen­sa­mento fi­lo­só­fico (1956-1960, com­pi­lação com a qual marcou ge­ra­ções de pro­fes­sores, es­ca­pando à cen­sura); An­tigos e Mo­dernos. Es­tudos de His­tória So­cial das Ideias (1984); entre ou­tros, de onde se pode as­si­nalar, pu­bli­cadas pos­tu­ma­mente, pro­vando a lon­ge­vi­dade do seu pen­sa­mento: An­tónio Sérgio – O Ide­a­lismo Crí­tico: Gé­nese e Es­tru­tura; Raízes Gno­se­o­ló­gicas e So­ciais; Es­tudo de His­tória So­cial das Ideias (2013) e Frag­mentos sobre Ide­o­logia (2015, tra­du­zida do francês e edi­tada pelo Grupo de Es­tudos Mar­xistas – GEM).

Hoje é mais fácil en­con­trar as suas obras, entre ou­tras, na sua Bi­bli­o­teca par­ti­cular, le­gada ao PCP, que este re­cen­te­mente doou à Bi­bli­o­teca da Fa­cul­dade de Le­tras da Uni­ver­si­dade de Lisboa. A do­ação, ocor­rida no ano pas­sado, con­sistiu em mais de 11 mil exem­plares, se­gu­ra­mente a maior bi­bli­o­teca mar­xista da Pe­nín­sula Ibé­rica, ainda que abranja di­versas te­má­ticas não mar­xistas. De mo­mento, o seu acervo ainda se en­contra em tra­ta­mento, não obs­tante, al­guns li­vros já podem ser ace­didos. O PCP ainda con­serva parte de seu es­pólio, que lhe foi le­gado com a Bi­bli­o­teca. Uma parte deste es­pólio já foi pu­bli­cada, es­tando em es­tudo a pos­si­bi­li­dade de se editar ou­tras obras.

A vida do ca­ma­rada cons­titui mais um exemplo de de­di­cação ao pro­jecto de so­ci­e­dade que o Par­tido de­fende. Ma­ga­lhães-Vi­lhena era con­si­de­rado um co­mu­nista fi­ló­sofo (pri­meiro tornou-se co­mu­nista e, apenas de­pois, fi­ló­sofo), mas, por­ven­tura, a me­lhor ma­neira de o des­crever terá sido en­con­trada por um de seus amigos, o fi­ló­sofo francês Guy Besse, ao in­ti­tular um ar­tigo, em sua ho­me­nagem, da se­guinte ma­neira: «Ma­ga­lhães-Vi­lhena, fi­ló­sofo e com­ba­tente».




Mais artigos de: Argumentos

Crianças e jovens<br>em risco

No nosso País, o acompanhamento das crianças e jovens em situação de risco e perigo conquistou tardiamente consagração legal – Lei n.º 147/99. Anteriormente, o Decreto-lei n.º 189/91 que esteve na origem da criação das...

A serpente

Estes têm sido, na televisão e não só, os dias do futebol, o que concilia o apetite das gentes com o objectivo aparente se não efectivo, e aliás já antigo, de injectar na generalidade dos cidadãos o apetite pelo golo em vez da apetência por uma sociedade...