Comentário

500 milhões para enterrar a nossa agricultura

Miguel Viegas

Muito se tem dito e es­crito sobre os 40 anos da adesão de Por­tugal à União Eu­ro­peia (na al­tura CEE). Por mais loas que se cantem às van­ta­gens desta adesão, não há pa­la­vras que possam es­conder as con­sequên­cias de­sas­trosas deste pro­cesso ao nível do nosso apa­relho pro­du­tivo, e em par­ti­cular, da nossa agri­cul­tura. Na al­tura da adesão, o PCP ca­rac­te­rizou esta in­te­gração, pondo em re­levo a sua na­tu­reza de classe e a sua ma­triz ne­o­li­beral, mi­li­ta­rista e fe­de­ra­lista. Cedo alertou para os riscos que tal de­cisão com­por­taria para os sec­tores pro­du­tivos na­ci­o­nais. In­fe­liz­mente para Por­tugal, o tempo veio e con­tinua a dar razão ao PCP.

A PAC, Po­lí­tica Agrí­cola Comum, re­pre­sentou desde a sua cri­ação, um ins­tru­mento ao ser­viço dos grandes agrá­rios do Centro e Norte da Eu­ropa e dos grupos do agro­ne­gócio ali­mentar. Con­tudo, é a partir de 1999, com vá­rias re­vi­sões da PAC, que a ma­triz ne­o­li­beral da União Eu­ro­peia se re­vela na sua ple­ni­tude ao nível das po­lí­ticas agrí­colas. Com o duplo ob­jec­tivo de li­be­ra­lizar os mer­cados agrí­colas e de di­mi­nuir o or­ça­mento da PAC, fomos as­sis­tindo ao des­man­te­la­mento de todos os ins­tru­mentos pú­blicos de re­gu­lação da pro­dução, dei­xando ao dito «fun­ci­o­na­mento do mer­cado» o ajus­ta­mento entre a oferta e a pro­cura.

Como é evi­dente, esta cons­titui mais uma pa­tranha do sis­tema para nos im­pingir as ditas re­formas es­tru­tu­rais que, na prá­tica, apenas levam à con­cen­tração da pro­dução e à po­la­ri­zarão da ri­queza e do ren­di­mento. Como ex­plicar a um agri­cultor a ne­ces­si­dade de ajustar a sua pro­dução quando sa­bemos que os ci­clos pro­du­tivos duram anos? Pe­guemos num in­ves­ti­mento, numa ex­plo­ração lei­teira ou numa plan­tação de uma vinha e veja-se qual a margem exis­tente ao nível da cha­mada elas­ti­ci­dade da oferta. E de­pois ve­nham os ilus­tres eco­no­mistas falar das vir­tudes do mer­cado livre e da con­cor­rência sã...

Vem isto a pro­pó­sito do úl­timo pa­cote de mi­ga­lhas anun­ciado pela Co­missão Eu­ro­peia na se­mana pas­sada, des­ti­nado a calar os pro­testos dos agri­cul­tores. Esta me­dida não pode ser des­li­gada das muitas lutas dos agri­cul­tores que se de­sen­vol­veram um pouco por toda a Eu­ropa. Estas re­sultam di­rec­ta­mente do fim da re­gu­lação pú­blica dos mer­cados as­so­ciada a uma pro­gres­siva aber­tura aos mer­cados mun­diais. Em suma, os nossos agri­cul­tores, no­me­a­da­mente a pe­quena e média agri­cul­tura, vivem hoje com a corda na gar­ganta pelo facto dos preços pagos à pro­dução es­tarem muito abaixo dos custos de pro­dução. O fim das quotas lei­teiras e o «me­ca­nismo de ater­ragem suave» con­duziu, tal como o PCP previu, a um au­mento da pro­dução nos países do Centro e do Norte da Eu­ropa e ao afun­da­mento do preço pago pelo litro de leite, ame­a­çando a so­bre­vi­vência de mi­lhares de pro­du­tores.

Ve­jamos agora com algum de­talhe este pa­cote de «ajudas». Dos 500 mi­lhões de ajudas, 150 des­tinam-se a fi­nan­ciar uma re­dução vo­lun­tária da pro­dução. Ou seja, man­tendo-se a pro­dução livre sem o re­gime de quotas ou qual­quer me­ca­nismo que pre­serve a pro­dução na­ci­onal, sa­bemos de an­temão o que irá acon­tecer. Serão os pro­du­tores do Sul, de­sig­na­da­mente os pro­du­tores por­tu­gueses que não aguentam preços abaixo dos 30 cên­timos por litro a re­correr a esta ajuda, di­mi­nuindo assim ainda mais a pro­dução na­ci­onal, que será logo «com­pen­sada» pela pro­dução do Centro e Norte da Eu­ropa. Os ou­tros 350 mi­lhões de euros serão dis­tri­buídos pelos es­tados na­ci­o­nais para estes de­fi­nirem me­didas de apoio aos agri­cul­tores com a par­ti­cu­la­ri­dade de a estas ajudas poder ser acres­cido um co-fi­nan­ci­a­mento na­ci­onal até igual valor. Este co-fi­nan­ci­a­mento não será con­si­de­rado ajuda de Es­tado. Ou seja, em vez de se cor­rigir os de­se­qui­lí­brios ge­rados por uma PAC cada vez mais in­justa, acen­tuam-se as de­si­gual­dades com um me­ca­nismo que, em te­oria, pre­tende apoiar todos os países. Con­tudo, na prá­tica, apenas irá fun­ci­onar nas re­giões mais ricas tendo em conta os cons­tran­gi­mentos fi­nan­ceiros que en­frentam grande parte dos países do sul, no­me­a­da­mente Por­tugal.

Como era de es­perar, PS e PSD, ambos res­pon­sá­veis, ao longo das úl­timas dé­cadas, pelo des­ca­labro da nossa agri­cul­tura, já vi­eram a ter­reiro aplaudir de forma servil mais este pa­cote de re­gressão. Da parte do PCP, não po­demos deixar de re­pu­diar estas me­didas, re­cu­sando qual­quer di­mi­nuição da pro­dução na­ci­onal. Se houver re­dução, que esta seja re­par­tida pelos países que con­tri­buíram para o ac­tual ex­cesso de oferta. E que seja re­posto de uma vez por todas um me­ca­nismo de re­gu­lação da pro­dução (vulgo quotas) que sal­va­guarde a todos os es­tados na­ci­o­nais o di­reito a pro­duzir e a ga­rantir a sua so­be­rania ali­mentar!



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