A voz de Dan

Sérgio Dias Branco

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Quando o re­a­li­zador bri­tâ­nico Ken Loach re­cebeu a Palma de Ouro do Fes­tival de Cannes deste ano por I, Da­niel Blake (Eu, Da­niel Blake, 2016) já con­tava com um prémio destes. The Wind That Shakes the Barley (Brisa de Mu­dança, 2006) tinha ganho o mesmo ga­lardão há uma dé­cada. Os dois filmes mos­tram duas fa­cetas da obra de Loach que não se opõem: uma in­te­res­sada pelo pre­sente, outra pelo pas­sado. São duas li­nhas do mesmo pro­jecto: o de dar a ver o con­flito entre classes no ca­pi­ta­lismo numa es­cala mí­nima, mesmo quando tem uma di­mensão na­ci­onal, en­rai­zando nar­ra­tivas no quo­ti­diano de­ta­lhado de per­so­na­gens vindas do pro­le­ta­riado. The Wind That Shakes the Barley narra o com­bate or­ga­ni­zado de tra­ba­lha­dores ir­lan­deses contra as tropas bri­tâ­nicas que ten­tavam im­pedir o pro­cesso de in­de­pen­dência da Ir­landa em 1920. Land and Fre­edom (Terra e Li­ber­dade, 1995), no qual um co­mu­nista in­glês par­ti­cipa na luta contra o fas­cismo na Guerra Civil Es­pa­nhola, é outro exemplo. I, Da­niel Blake narra a es­tória de um mar­ce­neiro im­pe­dido de tra­ba­lhar por causa de pro­blemas car­díacos a quem é ne­gado apoio so­cial. Kes (1969), sobre a vida árdua de um rapaz numa bacia mi­neira em Yorkshire, é outro exemplo. A obra de Loach mostra a ac­tu­a­li­dade da his­tória e a ac­tu­a­li­dade como his­tória.

Loach é um re­tra­tista re­a­lista. De­vemos a Gi­orgi Lu­kács o acento na­quilo que há de hu­mano na gé­nese de uma obra de arte. Mas de­vemos a ou­tros pen­sa­dores mar­xistas como Adolfo Sán­chez Vaz­quez e Álvaro Cu­nhal a ideia de que a arte não é re­du­tível a uma forma (não ci­en­tí­fica) de co­nhe­ci­mento, mas é uma cri­ação hu­mana que se ma­ni­festa através de es­tilos di­versos. O re­a­lismo é um desses es­tilos, não po­dendo ser li­mi­tado à sim­ples fi­gu­ração, tra­tando-se de uma trans­fi­gu­ração, tra­balho sobre as fi­guras para que ex­pressem a re­a­li­dade hu­mana. Vindos do re­a­lismo so­cial bri­tâ­nico com origem no final da dé­cada de 1950, com ci­ne­astas como Tony Ri­chardson ou Karel Reisz, os re­tratos de Loach as­sumem um olhar a partir dos tra­ba­lha­dores. Os seus filmes de re­sis­tência dão-lhes voz.

Du­rante o ge­né­rico ini­cial, é pre­ci­sa­mente a voz de Da­niel Blake (Dave Johns) que ou­vimos ainda sobre o ecrã negro. Es­cu­tamos uma con­versa entre ele e uma «pro­fis­si­onal de saúde» con­tra­tada pelos ser­viços so­ciais bri­tâ­nicos para ava­liar o seu caso. Co­meça aqui o seu per­curso pelos me­an­dros ab­surdos destes ser­viços em que as re­gras rí­gidas e de­sa­de­quadas se so­bre­põem ao tra­ta­mento hu­mano. A dis­torção ope­rada nos ser­viços é evi­dente. A ava­li­a­dora da sua ap­tidão para tra­ba­lhar per­tence a uma com­pa­nhia pri­vada ame­ri­cana con­tra­tada pelo Es­tado.

Ig­no­rando um re­la­tório mé­dico e se­guindo um guião de per­guntas que nada têm a ver com a sua con­dição, clas­si­fica-o como apto, logo sem di­reito a apoio so­cial. O sis­tema, bu­ro­cra­ti­zado e pri­va­ti­zado, des­mo­tiva quem pro­cura os apoios que lhe são de­vidos, le­vando muita gente a de­sistir. Entre as pa­la­vras e os gestos, a con­tenção e a ex­plosão, as lá­grimas con­tidas e ver­tidas, a es­pera e o pro­testo, a fome pro­lon­gada e a ne­ces­si­dade de comer, o filme vai en­con­trar a justa co­re­o­grafia destas vidas. Esta tensão, pró­pria do me­lo­drama, surge de uma forma que evita exa­cerbar a dra­ma­ti­ci­dade, forçar o mi­se­ra­bi­lismo, ex­pres­sando a es­pes­sura hu­mana, va­ci­lante e vi­brante, de cada per­so­nagem e das suas re­la­ções. O tom é, em si­mul­tâneo, en­xuto e co­mo­vente.

A voz de Dan, como é cha­mado pelos amigos, toma muitas formas em New­castle. É a voz da so­li­da­ri­dade no in­te­rior de uma classe. Vem dos seus an­tigos co­legas da car­pin­taria. Vem do seu vi­zinho negro mal-pago que vende ténis, des­vi­ados de fá­bricas na China, na rua. Nasce da cum­pli­ci­dade dele com a per­so­nagem para a qual o filme gra­vita à me­dida que a pre­sença de Dan des­va­nece e o seu corpo cede. Chama-se Katie (Hayley Squires), uma mãe que cuida so­zinha de duas cri­anças, e que ele se ergue para de­fender.

Ten­tando fazer ser­viço de lim­peza, ela faz tudo para ga­rantir que as cri­anças não so­frem com a po­breza, in­cluindo re­correr ao pe­queno furto e de­pois à pros­ti­tuição. É a ne­gação de di­reitos fun­da­men­tais e da dig­ni­dade hu­mana que gera a ne­ces­si­dade ur­gente e a acei­tação da mer­can­ti­li­zação da se­xu­a­li­dade. O ca­pi­ta­lismo não in­ventou a pros­ti­tuição, mas a ide­o­logia bur­guesa torna-a um re­curso acei­tável e uma ac­ti­vi­dade de­fen­sável, es­con­dendo as ra­zões eco­nó­micas e a ex­plo­ração que estão na sua base.

A cena em que Dan passa as bar­reiras das portas de uma casa comum de um bairro como o seu, para en­trar no quarto onde Katie se pros­titui, vai ao cerne destas re­la­ções so­ciais e pes­soais. Não é apenas o facto de serem amigos que des­nuda a si­tu­ação, mas o facto de serem da mesma classe, de per­ce­berem que estão juntos, no mesmo lugar na vida. A voz de Dan vem da sua boca, lê-se na pa­rede onde es­creve «Eu, Da­niel Blake exijo a data do meu re­curso antes que eu morra de fome», mas não só. No fim, Katie lê o texto que ele tinha es­crito para a au­di­ência sobre o seu caso, no qual dizia ser, não um pe­dinte, mas um tra­ba­lhador e um ci­dadão com di­reitos. Não é uma voz em­pres­tada esta que ou­vimos. Esta é também a voz de Katie.




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