Derrotar Trump

Ângelo Alves

Trump não é out­sider. Re­pre­senta o sis­tema

A apro­xi­mação da to­mada de posse do novo pre­si­dente dos EUA não deve fazer perder de vista as ten­dên­cias de fundo da si­tu­ação in­ter­na­ci­onal e nos prin­ci­pais cen­tros do im­pe­ri­a­lismo, com des­taque para aquela que ainda é in­dis­cu­ti­vel­mente a sua maior po­tência – os EUA.

As elei­ções nos EUA re­ve­laram um con­junto muito sig­ni­fi­ca­tivo de con­tra­di­ções: na pró­pria so­ci­e­dade norte-ame­ri­cana cada vez mais mer­gu­lhada numa pro­funda crise so­cial de gi­gan­tescas e cres­centes de­si­gual­dades e dis­cri­mi­na­ções; no es­tado da eco­nomia norte-ame­ri­cana, cujo grau de fi­nan­cei­ri­zação, com­po­nente ex­terna e de pi­lhagem in­ter­na­ci­onal ainda tenta es­conder uma crise eco­nó­mica que não cessa de acu­mular enormes fac­tores de risco; no seio das classes do­mi­nantes, cujas ri­va­li­dades se acen­tuam face à pro­fun­di­dade da crise eco­nó­mica, ao de­clínio eco­nó­mico re­la­tivo mun­dial dos EUA e ao pro­cesso de re­ar­ru­mação de forças no plano in­ter­na­ci­onal; e ainda no plano po­lí­tico quando se as­siste a uma erosão ide­o­ló­gica do sis­tema de poder que tem do­mi­nado aquele país.

A ad­mi­nis­tração Trump será um acres­cido factor de ex­plo­ração, guerra, tur­bu­lência e in­cer­teza. Mas como o ba­lanço da ad­mi­nis­tração Obama de­monstra, esses pe­rigos não nas­ceram com a eleição de Trump nem fazem dos seus an­te­ces­sores, ou ri­vais, ima­cu­lados pro­gres­sistas. A sua eleição é uma ex­pressão e uma con­sequência da in­cer­teza e pe­rigos que de­correm da evo­lução do Mundo e da prin­cipal po­tência im­pe­ri­a­lista mun­dial. Ana­lisar o que já se passou, e o que se vai passar, sem ter como pano de fundo o apro­fun­da­mento da crise es­tru­tural do ca­pi­ta­lismo, o ex­tre­ma­mente com­plexo pro­cesso de re­ar­ru­mação de forças que marca a re­a­li­dade mun­dial, e a vi­o­lenta ofen­siva do im­pe­ri­a­lismo que está a con­duzir o Mundo a uma si­tu­ação de guerra ge­ne­ra­li­zada e à emer­gência de forças re­ac­ci­o­ná­rias e fas­cistas, seria um erro.

Trump não é out­sider. Re­pre­senta o sis­tema, é a face da re­acção do grande ca­pital e do im­pe­ri­a­lismo à crise do ca­pi­ta­lismo. A linha po­lí­tica de Trump e dos seus se­cre­tá­rios aponta para um rumo de ainda maior ex­plo­ração dos tra­ba­lha­dores e do povo norte-ame­ri­cano; para uma ainda mais vi­o­lenta afir­mação be­li­cista dos EUA e para uma ainda mais vin­cada de­riva re­ac­ci­o­nária da po­lí­tica in­terna e ex­terna dos EUA.

Mas nada disto é ex­te­rior ao sis­tema. Cen­trando as aten­ções nas no­me­a­ções de Trump para a sua ad­mi­nis­tração cons­ta­tamos fa­cil­mente que o seu dis­curso contra Wall Street ra­pi­da­mente foi subs­ti­tuído pela no­me­ação de uma ad­mi­nis­tração co­man­dada por mul­ti­mi­li­o­ná­rios, por gente da po­de­rosa in­dús­tria pe­tro­lí­fera e por inú­meros qua­dros da Goldman Sachs. A sua po­lí­tica ex­terna será con­du­zida por si­nis­tras fi­guras, por au­tên­ticos fal­cões, que muito cer­ta­mente pros­se­guirão e in­ten­si­fi­carão a po­lí­tica de in­ge­rência e guerra que a ad­mi­nis­tração Obama levou a cabo, e que cer­ta­mente de­fen­derão o papel dos EUA na NATO.

Mas, e esse é um factor novo, a tran­sição po­lí­tica nos EUA está a ser mar­cada por uma inau­dita «guerra» pú­blica e pu­bli­ci­tada entre as di­fe­rentes fac­ções do poder eco­nó­mico, po­lí­tico e mi­litar nos EUA. Ela é bem vi­sível na dis­cussão pú­blica sobre a ale­gada in­ge­rência russa nas elei­ções dos EUA, que o re­la­tório da CIA, FBI e NSA não prova, mas ao qual Trump já deu o seu acordo. Uma dis­cussão tão mais hi­pó­crita e ab­surda quanto os EUA es­ti­veram e estão en­vol­vidos em inú­meros pro­cessos de in­ge­rência e de­ses­ta­bi­li­zação, seja pela força do di­nheiro, seja das armas.

Mas essa é uma «guerra» em que as con­tra­di­ções se cen­tram nos alvos, in­te­resses es­pe­cí­ficos e tác­tica, e não na de­cisão de pros­se­guir ou não a po­lí­tica de do­mínio im­pe­ri­a­lista. E é aí que a luta dos povos tem de con­cen­trar aten­ções. Der­rotar Trump e o que ele sig­ni­fica im­plica der­rotar o sis­tema que o levou a ele, e a ou­tros pre­si­dentes dos EUA, ao poder.




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