Em Setúbal o Museu está na rua

Manuel Augusto Araújo

O que traça a fron­teira entre nós e o ar­tista é a ma­neira de ver

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Quando uso uma pa­lavra
diz Humptie Dumptie em tom de des­prezo –
ela sig­ni­fica exac­ta­mente o que quero dizer, nem mais, nem menos.
A questão – diz Alice – é a de saber o que querem sig­ni­ficar
tanto as coisas como as pa­la­vras»
Alice no País das Ma­ra­vi­lhas – Lewis Car­roll


 

O Museu está na Rua, no Bairro da Bela Vista em Se­túbal, en­con­trou em João Lim­pinho o seu es­cultor. Não foi um acaso. O co­nhe­ci­mento da sua obra dava so­bejas ga­ran­tias a quem fez a en­co­menda e se­lec­ci­onou o ar­tista por con­curso pú­blico, a Câ­mara Mu­ni­cipal de Se­túbal. Lim­pinho e Du­champ têm um traço de união, os «ready-made» /ob­jectos en­con­trados. Para Du­champ é um fim para Lim­pinho um prin­cípio. Têm a ati­tude idên­tica de pro­cu­rarem re­tirar a aura à arte, de ques­ti­onar a li­ne­a­ri­dade das lei­turas dos ob­jectos que po­voam o mundo. Para O Museu está na Rua, o es­cultor vas­cu­lhou as su­catas de vá­rias em­presas do Parque In­dus­trial de Se­túbal para en­con­trar os ob­jectos que iria trans­formar em es­cul­turas. Num pro­jecto com aquela di­mensão, com ob­jec­tivos es­té­ticos, so­ciais e po­lí­ticos bem de­fi­nidos, só a sua alma de ar­tista en­xer­tada numa rara qua­li­dade hu­mana sa­beria fa­bricar as obras de arte que va­lo­ri­za­riam aquele es­paço. Fê-lo sem a menor con­cessão de gosto mas sem pre­ten­si­o­sismos eli­tistas, sempre em diá­logo com as co­mu­ni­dades com a fi­na­li­dade das es­cul­turas serem en­ten­didas e adop­tadas por quem iria di­a­ri­a­mente con­viver e aprender a ver com elas.

João Lim­pinho, com uma mão no ferro e outra dentro da ca­beça, tinha o olhar lím­pido e per­fu­rante que o fazia ver o que nin­guém con­segue ver aliado ao saber ofi­cinal de tornar fí­sicas as suas vi­sões. Esse fazer de João Lim­pinho é ne­ces­sa­ri­a­mente pre­ce­dido por vá­rias cons­tru­ções men­tais que o es­cultor, en­quanto os ob­jectos estão, por assim dizer, «vivos», vai pro­jec­tando sobre eles, con­de­nando-os em «vida» a uma res­sur­reição anun­ciada. Res­sur­reição que ter­mi­nará numa rein­car­nação de cuja chave só ele é de­tentor.

O que traça a fron­teira entre nós e o ar­tista é exac­ta­mente essa ma­neira de ver: en­quanto nós olhamos para um ob­jecto e o ca­ta­lo­gamos por um quadro de re­fe­rên­cias ge­ne­ra­li­za­da­mente aceite, o es­cultor co­meça ime­di­a­ta­mente a ver o que nós não con­se­guimos ver. Na re­a­li­dade está a vam­pi­rizar a iden­ti­dade dos ob­jectos in­ven­tando-lhes di­versos fu­turos pos­sí­veis que se irão co­nhecer/​re­co­nhecer mais tarde. Em O Museu está na Rua, são treze es­cul­turas desde as que usam ele­mentos de grande porte, como as partes dos moldes de aço dos trí­podes, aquelas massas de ci­mento que pro­tegem os mo­lhes por­tuá­rios, que se unem com a sim­pli­ci­dade de re­cortes in­fantis em papel na es­cul­tura Cinco Con­ti­nentes, uma ho­me­nagem à mul­ti­cul­tu­ri­dade do Bairro. As formas jogam umas com as ou­tras sub­til­mente des­truindo a sua bru­teza ori­ginal para dar lugar a um de­li­ca­dís­simo bai­lado que a luz, o andar diário do sol abraça para acordar toda a po­esia que o es­cultor es­creveu em ferro. Ou­tras tem como ponto de par­tida ob­jectos mais sim­ples como um plano ho­ri­zontal de ferro, uma placa de co­fragem sem es­tó­rias que se rein­venta num Es­tendal de bi­kinis que são ex­traídos dos corpos dei­xando as formas va­zadas para se pen­du­rarem de uma corda de aço. A re­fe­rência aos es­ten­dais que são uma quase imagem de marca do bairro, fa­cil­mente en­ten­dida con­tri­buindo para a re­lação em­pá­tica dos ha­bi­tantes as es­cul­turas que agora pon­tuam os seus iti­ne­rá­rios. Muitas das es­cul­turas des­co­brindo-se as suas ori­gens pro­vocam sor­risos, risos. Esses sor­risos, esses risos serão sempre in­te­li­gentes.

São dois exem­plos ao acaso. Mas olhe-se para todas e cada uma das es­cul­turas de O Museu está na Rua para se ficar a saber que a arte, a poé­tica es­preita-nos a cada es­quina da vida. Não o sa­bíamos, apren­demos, con­ti­nu­amos a aprender essa ver­dade com João Lim­pinho e está à nossa es­pera nas es­cul­turas do Bairro da Bela Vista, em Se­túbal.




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