A capa

Correia da Fonseca

Há, na­tu­ral­mente, muitas formas de a te­le­visão exe­cutar o seu tra­balho in­for­ma­tivo, e há poucos dias ainda um dos ca­nais por­tu­gueses de TV, pouco im­porta qual, uti­lizou uma pouco usual ma­neira de o fazer: trans­mi­tindo a imagem da mais re­cente capa da re­vista norte-ame­ri­cana «Time», um órgão de in­for­mação/​ma­ni­pu­lação es­crita que tem a bo­nita ti­ragem de mais de três mi­lhões de exem­plares e cuja ex­pansão abrange o mundo in­teiro. Essa capa é feita com uma mon­tagem fo­to­grá­fica que amal­gama uma imagem da Casa Branca, como se sabe a re­si­dência ofi­cial do pre­si­dente dos Es­tados Unidos, com uma foto da ca­te­dral de São Ba­sílio, si­tuada na Praça Ver­melha de Mos­covo e sim­bó­lica do poder da Rússia. Mais: a mon­tagem está de tal modo feita que su­gere que a ca­te­dral está a avançar sobre a Casa Branca ten­dendo a tomar conta dela. Bem se pode dizer que é uma obra-prima de ma­ni­pu­lação me­diá­tica na área da im­prensa, o que aliás não sur­pre­ende pois bem se sabe como o Oci­dente eu­ro­a­tlân­tico em geral e norte-ame­ri­cano em es­pe­cial se aplica nessa ma­téria. Neste caso, o ci­dadão até fica dis­pen­sado de ler um texto es­crito: basta-lhe olhar a capa de uma re­vista. Po­demos lem­brar que o «raio de acção» desta men­sagem é, em prin­cípio, todo o pla­neta, mas é claro que a «Time» atinge so­bre­tudo o pú­blico norte-ame­ri­cano e, neste caso, é de­certo nos norte-ame­ri­canos que a re­vista quer in­jectar uma «in­for­mação» muito con­creta: a pre­si­dência dos Es­tados Unidos está a ser do­mi­nada pelo go­verno da Rússia. Trata-se de uma mo­da­li­dade ac­tu­a­li­zada do ima­gi­nário es­tri­bilho que em grande parte foi im­pin­gido, pelo menos por vias im­plí­citas, à opi­nião pú­blica dos Es­tados Unidos du­rante as dé­cadas da Guerra Fria: «Vêm aí os russos!». O que ex­plicou muita coisa, até a tese da «guerra pre­ven­tiva» ex­pli­ci­ta­mente ad­mi­tida por um si­nistro se­cre­tário de Es­tado.

Sau­dades da Guerra Fria

Esta cu­riosa capa da «Time» bem pode ser olhada não só no quadro da ac­tual si­tu­ação po­lí­tica in­terna dos Es­tados Unidos mas também no das re­ac­ções ha­vidas um pouco por todo o lado. Bem se sabe que a opo­sição in­terna a Trump é muito forte, aliás com boas ra­zões, e que a re­pro­vação in­ter­na­ci­onal a esse re­sul­tado elei­toral é também ge­ne­ra­li­zada, mas é sau­dável que os ci­da­dãos em­pe­nhados em en­tender, e não apenas em se­guir o que mais se ouve, se apli­quem a de­tectar os mais fortes mo­tivos dessa re­jeição. É claro que Trump dá abun­dantes si­nais de ser bruto, ma­chista, xe­nó­fobo, im­pante do poder que lhe é dado por uma enorme for­tuna pes­soal, e esta enu­me­ração está longe de es­gotar o in­ven­tário das suas prendas. Porém, o que mais nele de­sa­gra­dará a certos cír­culos do­mi­nantes será o seu ex­plí­cito pro­pó­sito de se en­tender com a Rússia, cer­ta­mente não tanto pelo ir­ra­di­ante poder de sim­patia de Vla­dimir Putin mas antes, por­ven­tura, por en­tender que há mais ren­dosos e menos pe­ri­gosos ne­gó­cios dis­po­ní­veis para os States além da Guerra Fria. Ora para certos cír­culos US, a Guerra Fria era um ne­gócio ca­tita que con­viria re­lançar. Co­lo­quemos neste con­texto a acu­sação im­plí­cita na capa da «Time» e ve­jamos se ela não faz sen­tido.




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