50 anos de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band

Manuel Pires da Rocha

Sgt. Pepper’s condensou muita da vida sonora da Humanidade

O que se sente, primeiro, em Sgt. Pepper’s é a luz dos rostos de quem está na capa, imaginada por Paul McCartney e desenhada por Peter Blake e Jann Haworth – tudo gente com significado, para o mundo ou para cada um os dos quatro de Liverpool. Só a seguir virá a música, naquele processo demorado de que se lembra quem é do tempo do vinil: escorregar a mão pela abertura da capa de cartão, sacar o disco, desembaraçá-lo da bolsa de plástico (ou de papel), colocá-lo no prato, ligar o motor, apontar a agulha.

A capa é, afinal, uma foto de família. A Banda do Sargento Pimenta em primeiro plano, rodeada de actores e comediantes, músicos, escritores, pintores, desportistas, pensadores, cientistas. Milhões de olhares – 50 anos de olhares! – hão-de ter percorrido aqueles rostos à procura de quem se goste, nos actos ou nas ideias. Os Beatles estão logo na fila da frente, descaídos sobre a esquerda, corpos de cera a quem a Banda de Sgt. Pepper roubou a alma, as vestes já tão fora do tempo moderno tocado (literalmente) pelos novos John, Paul, George e Ringo, janotas nas fardas de banda militar do tempo de Eduardo VII, o tal que é nome de parque de Lisboa.

Depois da imagem, a música. O jornalismo comemorativo virá dizer, por estes dias, que após 1 de Junho de 1967 nada viria a ser como dantes. Inflamadas palavras, estas, porém pouco informadas. Mas ninguém melhor para contrariar o precipitado juízo do que um dos personagens do retrato – Karl Marx – que lhes diria o que mais tarde Ary dos Santos escreveu num dos seus poemas-de-cantar: todo o passado é lastro do futuro, já que «os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam directamente, legadas e transmitidas pelo passado».

Apenas um disco?

Por isso é que em Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band ainda se sente Liverpool e Hamburgo, a memória das multidões, as mais belas melodias da música urbana do século passado. E, mesmo assim, mostrado aquele passado com a elegância que da Arte é qualidade, quase que se sente a consciência (marxista) de que assimilar o passado não é reproduzi-lo – é sabê-lo, e saber libertar-se dele. Por isso, talvez os sons iniciais do álbum – o murmúrio das vozes pontuado pelos timbres dos instrumentos em afinação – sejam o manifesto de uma nova ordem musical em que a rua e o palco dividem protagonismos para tecer Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.

Aquelas vozes hão-de ser as de Marylin e Fred Astaire, Dylan Thomas e H. G. Wells, Bob Dylan e Stockhausen, Livinsgtone e Einstein; e os instrumentos os de McCartney e Lennon, Ringo e Harrison, acrescentando às guitarras, ao baixo e à bateria, a harpa de She's Leaving Home, as trompas de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, as tablas e os sitares de Within You, Without You, os clarinetes de When I'm Sixty-Four, a orquestra clássica de A Day in the Life, sessenta e seis vontades empurrando a partitura de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band ao encontro dos nossos dias, cinquenta anos depois, em manchas sonoras de rock and roll, jazz, vaudeville, blues, música erudita da tradição europeia, música de cena, música clássica indiana.

Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band condensou, em 40 minutos de música, muita da vida sonora da Humanidade. Haverá quem encontre naquela música a qualidade de contribuir para explicar o mundo. Mas a presença, ali, de Karl Marx, alimenta-nos a esperança de que a intenção da Banda do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta, enquanto objecto artístico – ainda que seja «apenas um disco», como disse Paul McCartney – seja a de contribuir para a transformação do mundo.




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