No centenário

Correia da Fonseca

Não é que se possa dizer de um modo global que a te­le­visão, nos di­versos ca­nais que di­li­gen­te­mente con­fluem para os nossos te­le­vi­sores, não gosta de cen­te­ná­rios. De­pende. Mais exac­ta­mente: de­pende dos cen­te­ná­rios e do modo como lhe é pos­sível abordá-los. Por exemplo: ainda nos po­demos lem­brar de como a te­le­visão por­tu­guesa em geral e a te­le­visão pú­blica em es­pe­cial se li­mitou, há sete anos, a exe­cutar os ser­viços mí­nimos que a de­cência e o ser­viço pú­blico (de que os pri­vados não estão in­tei­ra­mente dis­pen­sados, ao con­trário do que muitas vezes eles pró­prios pa­recem supor) im­pu­nham pe­rante o cen­te­nário da pro­cla­mação da Re­pú­blica. O que pa­rece certo é que ela, a te­le­visão, não gosta de cen­te­ná­rios de re­vo­lu­ções, e pela com­pre­en­sível razão de que não gosta das re­vo­lu­ções co­me­mo­radas pelos cen­te­ná­rios. Esse fastio, porém, não a im­pede de apro­veitar as efe­mé­rides para lançar todo o ve­neno pos­sível no ima­gi­nário cham­panhe que aqui ou ali es­teja a ser ser­vido em clima de festa sau­dosa ou não. Como por vezes se diz, no apro­veitar é que está o ganho, e a te­le­visão sabe lin­da­mente onde, à luz dos seus cri­té­rios e con­ve­ni­ên­cias que são, já se vê, os cri­té­rios e as con­ve­ni­ên­cias de quem nela manda e dela se serve, está o ganho.

A se­mente

A es­pécie de in­tro­dução pro­va­vel­mente chata e de­certo inútil que ocupa a pri­meira parte desta co­luna vem, como fa­cil­mente se adi­vinha, a pro­pó­sito do cen­te­nário da Re­vo­lução de Ou­tubro de que a te­le­visão por­tu­guesa não podia alhear-se in­tei­ra­mente ainda que o qui­sesse fazer, sendo aliás óbvio que esse alhe­a­mento nem lhe con­vinha: os cem anos de­cor­ridos sobre Ou­tubro de 1917 sempre se­riam, como o foram, um ex­ce­lente pre­texto para der­ra­marem nos di­versos ca­nais, e so­bre­tudo nos ca­nais «es­pe­ci­al­mente in­for­ma­tivos», abun­dantes quan­ti­dades de de­for­ma­ções e si­lên­cios que pu­dessem re­sultar numa es­pécie de ve­re­dicto final a in­jectar nas ca­be­ci­nhas dos te­les­pec­ta­dores: que Ou­tubro de 1917 foi um erro que lançou pelo mundo fora uma es­pécie de peste al­ta­mente in­fec­ciosa que durou dé­cadas mas fe­liz­mente já foi er­ra­di­cada. É men­tira, bem o sa­bemos, e men­tira gros­seira; mas também sa­bemos que não é por ser gros­seira que uma enorme men­tira deixa de ter asas e voar por todo o mundo desde que lhe sejam so­prados fortes ventos fa­vo­rá­veis. É claro que a (des)in­for­mação eu­ro­a­tlân­tica está em­pe­nhada nessa cru­zada e que este cen­te­nário teria de ser um bom mo­mento para uma sua ofen­siva. Não es­panta: é para isso que lhe pagam. Me­lhor: é para isso que existe. E a re­ceita tem vindo a ser sim­ples: su­prima-se o ven­daval de es­pe­ranças que Ou­tubro de­sen­ca­deou por todo o mundo, as muitas li­ber­ta­ções que veio se­mear e que mais tarde ou mais cedo de­sa­bro­charam, as pers­pec­tivas que mesmo quando adi­adas se mantêm vivas em todos os re­cantos onde são ne­ces­sá­rias, si­lencie-se toda essa enorme seara de efeitos po­si­tivos e em seu lugar fale-se apenas, sempre e muito, de Es­ta­line e do «es­ta­li­nismo». Mas a re­ceita fa­lhará, sa­bemo-lo. Porque o ca­pi­ta­lismo pú­trido não pode ser o fu­turo do mundo. E a se­mente de Ou­tubro vai con­ti­nuar a ger­minar.




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