Os incêndios, as Forças Armadas e dúvidas

Rui Fernandes

Aquilo que se co­loca é sobre o «de­senho» da sua co­la­bo­ração

O Con­selho de Mi­nis­tros ex­tra­or­di­nário avançou uma pa­nó­plia de me­didas de na­tu­reza muito di­versa, muitas das quais a ne­ces­sitar de de­sen­vol­vi­mentos para que se per­ceba me­lhor o seu al­cance, or­ga­ni­zação, modo de fun­ci­o­na­mento, etc., para além da questão dos meios hu­manos, de equi­pa­mento e fi­nan­ci­a­mento. Está neste caso o que foi re­fe­rido quanto ao en­vol­vi­mento das Forças Ar­madas (FA). Im­porta então, antes de mais, ter pre­sente o ar­tigo 275.º da Cons­ti­tuição da Re­pú­blica por­tu­guesa onde, a par da afir­mação de in­cum­bên­cias ex­pressas às FA, consta no seu n.º 6 que «As Forças Ar­madas podem ser in­cum­bidas, nos termos da lei, de co­la­borar em mis­sões de pro­tecção civil, em ta­refas re­la­ci­o­nadas com ne­ces­si­dades bá­sicas e a me­lhoria da qua­li­dade de vida das po­pu­la­ções, e em ac­ções...».

Com pouco tempo de exis­tência, o Exér­cito possui o Re­gi­mento de Apoio Mi­litar de Emer­gência. Seja Re­gi­mento ou Uni­dade Mi­litar de Emer­gência (caso es­pa­nhol), aquilo que se su­blinha é a na­tu­reza da mesma, ou seja, a emer­gência. Quer isto dizer que não é para qual­quer in­cêndio, der­ro­cada ou cheia que a mesma deve/​pode ser ac­ci­o­nada.

Entre as de­ci­sões adop­tadas, consta também o en­vol­vi­mento da Força Aérea no com­bate a fogos. Como se sabe, a FAP perdeu essa ca­pa­ci­dade por opção de um dos go­vernos do PS, com o apoio e pros­se­gui­mento do PSD/​CDS. O PCP sempre es­teve contra. Tanto quanto se al­cança da de­cisão agora to­mada, não se trata só de poder co­la­borar, mas também gerir e ga­rantir a ope­ração, tanto dos seus meios pró­prios com va­lência para este ob­jec­tivo (que de mo­mento não possui), como de meios civis con­tra­tados ou ad­qui­ridos pelo Es­tado.

Neste con­texto, não deixa de ser sin­to­má­tico que As­censo Si­mões, de­pu­tado do PS, em en­tre­vista re­cente (Pú­blico de 26/​10) afirme o se­guinte «Também a questão dos meios aé­reos e a sua pas­sagem para o Mi­nis­tério da De­fesa faz sen­tido, mas não es­quecer que em 2005 isso se tentou e não foi pos­sível porque as es­tru­turas das Forças Ar­madas (FA) têm sempre (e es­pero que agora não o usem) uma res­posta que é su­por­tada na Cons­ti­tuição – que o uni­verso de com­pe­tên­cias não lhes per­mite ir além do que já fazem. Es­pero que a fle­xi­bi­li­dade das FA tenha per­mi­tido per­ceber que têm con­di­ções para fazer uma gestão e apli­cação, sendo im­por­tante saber onde se vai in­te­grar o co­mando no sis­tema da Pro­tecção Civil – porque a ...». Ou seja, tem sido uma cha­tice que os mi­li­tares, tendo em conta a Cons­ti­tuição, não te­nham visto com bons olhos as­sumir res­pon­sa­bi­li­dades além da­quilo que ela fixa. Esta afir­mação do de­pu­tado do PS co­loca, ao Go­verno e aos ac­tuais Chefes o pro­blema de cuidar do «de­senho» para que não se caia em in­cons­ti­tu­ci­o­na­li­dades até porque, ao con­trário do que afirma o Te­nente Ge­neral Fru­tuoso Pires Ma­teus (DN 26/​10) «numa de­mo­cracia as Forças Ar­madas obe­decem às de­ci­sões do Poder Po­lí­tico», mas têm de o fazer no quadro da CRP e da Lei e não ig­no­rando essa questão cen­tral quanto a seu papel no re­gime de­mo­crá­tico.

Dú­vidas per­ti­nentes

Temos as­sis­tido à co­la­bo­ração das Forças Ar­madas em apoio lo­gís­tico e ou­tras ac­ti­vi­dades de des­ma­tação, aber­tura de aceiros, res­caldo de in­cên­dios em­bora sem equi­pa­mento ade­quado, etc. Mas também, nou­tras ma­té­rias, à sua co­la­bo­ração na vi­gi­lância de praias, serras, etc. Ou seja, ao seu uso em si­tu­a­ções de emer­gência (caso dos re­centes in­cên­dios), mas ao seu uso fora desse quadro. Em vez de or­ga­nizar e re­forçar as forças e ser­viços com com­pe­tência nessas ma­té­rias, en­volve-se os mi­li­tares.

Che­gados aqui, duas dú­vidas que se co­locam: a pri­meira é se não es­tamos em pre­sença de uma pa­nó­plia de es­tru­turas em vá­rios mi­nis­té­rios, para mais a pa­de­cerem todas elas de ca­rên­cias vá­rias. A se­gunda, é se não se ca­minha para um «uso e abuso» das Forças Ar­madas para quase tudo, ao bom es­tilo do «pau para toda a obra» a baixo custo.

Com­pre­enda-se, re­pete-se, que não se está contra a co­la­bo­ração das Forças Ar­madas (aliás, sempre o de­fen­demos), e muito menos o es­ta­ríamos no con­texto ca­la­mi­toso dos in­cên­dios que ti­veram lugar. Aquilo que se co­loca é sobre o «de­senho» da sua co­la­bo­ração para a frente. Se se pre­tende re­or­ga­nizar, es­tru­turar, me­lhorar a res­posta no âm­bito da Pro­tecção Civil, im­porta desde logo ter pre­sente que não é só de in­cên­dios que se trata. Como fazer com uma si­tu­ação ca­la­mi­tosa de cheias? De der­ro­cadas graves? Com o sal­va­mento ma­rí­timo cos­teiro? Com res­gates de maior es­cala? Com in­cên­dios ur­banos graves? É tudo com as Forças Ar­madas? Mais o Afe­ga­nistão, a NATO, etc.? Pas­samos a ter Forças Ar­madas para mis­sões ex­ternas e para ta­refas da na­tu­reza das já re­fe­ridas? É que, como tem sido re­fe­rido por quem de di­reito, os efec­tivos estão abaixo das ne­ces­si­dades para res­posta às mis­sões atri­buídas e a dú­vida é se a opção é «ba­na­lizar» o en­vol­vi­mento de mi­li­tares para mis­sões como as atrás re­fe­ridas ou, por exemplo, re­forçar os ca­na­ri­nhos.

É assim nesta «flo­resta» de es­tru­turas, com­pe­tên­cias, âm­bitos, po­deres, de­pen­dên­cias vá­rias, etc., que con­ti­nu­a­remos? Uma «flo­resta» em que vá­rios podem, mas não fazem ou não querem ou querem mas não podem porque foram de­ca­pi­tados de pes­soal; em que ou­tros podem só um bo­ca­dinho mas querem poder tudo; ou­tros não podem mas querem poder e vão es­gra­va­tando a afir­mação do seu querer tudo, muitas vezes ig­no­rando o que a lei es­ta­be­lece ou con­tor­nando-a? Acon­selha-se pru­dência!

 



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