Lutos

Correia da Fonseca

O tí­tulo desta co­luna é desta vez um pouco si­nistro, mas a culpa desse facto é da cha­mada «lei da vida» que na ver­dade é também e so­bre­tudo a «lei da morte». É que em poucos dias a te­le­visão trouxe-nos, como aliás lhe cum­pria, no­tí­cias de fa­le­ci­mentos que em maior ou menor grau sen­si­bi­li­zaram os te­les­pec­ta­dores, todos ocor­ridos nos úl­timos dias de No­vembro: o de Bel­miro de Aze­vedo, em­pre­sário de enorme su­cesso e de­tentor de uma das mai­ores for­tunas do País; o do «rocker» Zé Pedro, fun­dador dos Xutos & Pon­tapés e muito po­pular so­bre­tudo entre os pú­blicos mais jo­vens; e os de quatro pes­ca­dores que nau­fra­garam ao largo da Fi­gueira da Foz quando apesar do tempo agreste tra­tavam de «ga­nhar a vida», ex­pressão neste caso si­nis­tra­mente pa­ra­doxal mas que é cos­tume dizer-se de quem tra­balha para se sus­tentar e aos seus. É claro que a atenção das di­versas ope­ra­doras de TV não se re­partiu igual­mente por estas no­tí­cias e seria como que con­tra­na­tura que o ti­vessem feito: de Bel­miro e Zé Pedro se po­derá dizer que todos os co­nhe­ciam, até que cada um deles tinha o seu es­pe­cí­fico pú­blico, en­quanto os pes­ca­dores nau­fra­gados apenas eram como que ha­bi­tantes de um pe­queno uni­verso res­trito, de­certo amados por fa­mi­li­ares e muito pro­va­vel­mente es­ti­mados por ca­ma­radas de ofício, por aí se fi­cando a sua pro­jecção no mundo.

Uma tra­gédia fre­quente

E, con­tudo, uns e ou­tros, o homem dos grandes ne­gó­cios e da for­tuna que lhe per­mitia grandes ar­ro­gân­cias, o eterno jovem da mú­sica dos jo­vens e dos que já dei­xaram es­capar a ju­ven­tude mas lhe per­ma­necem fiéis no ter­reno da nos­talgia, ti­nham de­certo em comum ca­rac­te­rís­ticas fun­da­men­tais: pa­tri­mó­nios de pro­jectos exe­cu­tados e também de al­guns inê­xitos; afectos e de­sa­fectos; talvez ainda ex­pec­ta­tivas de mis­tura com al­gumas es­pe­ranças já ar­qui­vadas. Quanto aos pes­ca­dores mortos, as coisas se­riam talvez de menor di­mensão: por­ven­tura apenas a es­pe­rança de que os seus fi­lhos pu­dessem aceder a uma pro­fissão menos dura e in­certa, talvez apenas de que uma su­cessão de boas pes­ca­rias re­sul­tasse em dias ale­gres. Uma coisa é certa: as di­fe­renças entre uns e ou­tros não se di­luíram de­pois da morte, antes pelo con­trário: os media en­cheram-se com in­for­ma­ções acerca do em­pre­sário e do mú­sico, dos seus feitos nas res­pec­tivas áreas de tra­balho, ao passo que dos pro­vá­veis mé­ritos dos pes­ca­dores na sua pro­fissão nada se soube, sinal tá­cito de que se­riam ir­re­le­vantes. Até do se­nhor Pre­si­dente da Re­pú­blica, sempre tão dis­po­nível para a so­li­da­ri­e­dade e para a par­tilha de emo­ções, a res­posta me­diá­tica foi di­fe­rente: foi no­ti­ciada a sua pre­sença no ve­lório do grande em­pre­sário, pu­demos ouvir as suas pa­la­vras de ad­mi­ração pelo «rocker», a morte dos pes­ca­dores não lhe terá sus­ci­tado qual­quer sinal pú­blico de tris­teza. Talvez se en­tenda: a tra­gédia de pes­ca­dores nau­fra­gados tornou-se um facto triste mas fre­quente, e o que é fre­quente perde a ca­pa­ci­dade de emo­ci­onar. E, con­tudo, talvez seja pre­ciso fazer al­guma coisa para re­duzir, pelo menos re­duzir, esta con­de­nação à morte com data in­certa que pa­rece vir pe­sando sobre os pes­ca­dores por­tu­gueses.




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