Uma história de pasmar

Correia da Fonseca

Talvez se lhe de­vesse chamar, e com muita pro­pri­e­dade, uma his­tória de en­cantar, mas o tí­tulo afinal es­co­lhido jus­ti­fica-se pelo ver­da­deiro pasmo que se es­pe­lhou no rosto de uma por­tu­guesa idosa, re­si­dente lá para os nortes/​nor­destes, quando um dia lhe dis­seram que o homem ainda jovem que tinha di­ante de si era um mé­dico. É que de mé­dicos ela já havia ou­vido falar, sabia pois que exis­tiam, mas nunca vira ne­nhum. O epi­sódio acon­teceu há já mais de qua­renta anos, aí por 75, e foi-nos con­tado com imagem e som pela re­por­tagem que a RTP2 trans­mitiu há dias in­ti­tu­lada «E um dia che­garam os mé­dicos», as­si­nada por Mar­ga­rida Me­tello, com imagem de Paulo Jorge Branco e som de Mi­guel Car­doso, edição de Paulo Branco. Aí foi con­tado um epi­sódio re­ve­lador da si­tu­ação em que es­tava grande parte do país rural quando acon­teceu Abril e em­ble­má­tico do que se se­guiu ao der­rube da di­ta­dura: o envio de jo­vens mé­dicos para lu­gares em que o fas­cismo se dis­pen­sara de im­ple­mentar cui­dados mé­dicos ainda que mí­nimos. Como a re­por­tagem tes­te­mu­nhou com do­cu­men­tação vi­sual e so­nora, foi o res­gate do aban­dono para mi­lhares de por­tu­gueses que o re­gime de Sa­lazar e de­pois de Ca­e­tano de­ci­dira con­denar à morte «na­tural» em re­sul­tado da total pe­núria de cui­dados de saúde; foi de facto o claro in­dício de que Por­tugal en­trara num novo tempo ci­vi­li­za­ci­onal que de­mo­raria a or­ga­nizar-se mas cuja fase de ar­ranque já es­tava em marcha.

Ines­que­cível

Dis­creta e se­rena, apenas fac­tual, «E um dia che­garam os mé­dicos» foi con­tudo per­cor­rida por uma leve aragem de epo­peia que bem se en­tende quando nos lem­bramos de que Abril foi, e con­tinua a ser, uma epo­peia de li­ber­tação pe­rante um re­gime não apenas de opressão mas também de quo­ti­diana agressão. A ine­xis­tência de cui­dados mé­dicos em meios ru­rais era um dos seus as­pectos mais cruéis, aliás abun­dante na pro­dução de mortes e de so­fri­mentos que ade­quados tra­ta­mentos po­de­riam mi­norar, e será quase cu­rioso notar que as ví­timas dessa in­di­fe­rença as­sas­sina não ti­nham cons­ci­ência do con­ti­nuado crime que lhes acon­tecia: con­ti­nu­avam a en­tender o seu aban­dono como «na­tural», e por isso olhavam a vinda dos mé­dicos como ocor­rência sur­pre­en­dente e por­ven­tura até com even­tual sus­peita. Por seu lado, os mé­dicos, porque jo­vens e vindos das ci­dades, sur­pre­en­diam-se pe­rante o es­tado de aban­dono em que en­con­travam aqueles com­pa­tri­otas de­gra­dados e aquele país tra­gi­ca­mente des­co­nhe­cido. Tudo isso nos foi con­tado pela re­por­tagem ainda que sem pun­gentes por­me­nores: diz-se que para bom en­ten­dedor basta meia pa­lavra, e sendo em­bora certo que ima­gens e nar­ração cons­ti­tuíram mais que meia pa­lavra, um dos re­sul­tados im­plí­citos em «E um dia vi­eram os mé­dicos» foi o de cons­ti­tuir um li­belo acu­sa­tório contra um re­gime que en­quanto man­dava os jo­vens morrer em África con­de­nava os seus pais e avós à morte sem as­sis­tência mé­dica no in­te­rior do País. Em ver­dade, o tra­balho de Mar­ga­rida Me­tello é, para além do valor do­cu­mental, um ines­que­cível mo­mento de te­le­visão. Só po­dendo sur­pre­ender os de­certo muitos que ig­no­ravam aquele as­pecto de um re­gime cri­mi­noso.




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