Manuel e a sua Família, de Mário Moutinho de Pádua

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Mário Mou­tinho de Pádua, mé­dico, re­sis­tente e es­critor, tem-se afir­mado como uma voz sin­gular na aná­lise so­cial, fa­zendo-o não através do en­saio, como an­tro­pó­logo ou his­to­ri­ador, que Mário Pádua não é, mas uti­li­zando o dis­curso li­te­rário para nele in­te­grar, de forma muito hábil, as dis­ci­plinas e sa­beres do hu­mano: a an­tro­po­logia, a his­tória e a li­te­ra­tura, sob a égide ana­lí­tica e con­cep­tual do ma­te­ri­a­lismo di­a­léc­tico. Pro­cesso di­e­gé­tico que ao his­tó­rico se atrela como su­porte do dis­curso nar­ra­tivo e modo es­pe­cu­la­tivo de apro­fundar os fe­nó­menos po­lí­ticos, as guerras, as re­vo­lu­ções, os pro­cessos ci­vi­li­za­ci­o­nais ou de re­torno à mais ab­jecta bar­bárie, que do­mi­naram e trans­for­maram o País, e a Eu­ropa, ao longo do sé­culo XX.

Sendo a li­te­ra­tura, en­quanto pro­cesso de fi­xação da ima­gi­nação e da lin­guagem, ex­te­rior à his­tória, o certo é que a sua prá­tica pode abranger, porque acção de li­ber­dade livre, o ter­ri­tório do his­tó­rico como de­ri­vante da es­tru­tura ro­ma­nesca, e nele agir como re­a­li­dade formal in­te­grante, e a par, da re­a­li­dade fic­ci­onal. Não nos pa­rece, por­tanto, que a es­crita de Mário Mou­tinho de Pádua, que ra­dica na me­mória, na luta, na vida e no vi­vido, para a in­te­grar nos as­pectos his­tó­ricos de­ter­mi­nantes do edi­fício po­lí­tico e so­cial da con­tem­po­ra­nei­dade.

Por muito que o dis­curso nar­ra­tivo de Pádua as­sente no fac­tual his­tó­rico e nessa de­ri­vante se possa con­fundir com o en­saio, até pela ex­tensa bi­bli­o­grafia que o autor exibe, como acon­tece neste Ma­nuel e a sua Fa­mília, dado os longos pe­ríodos em que a es­tru­tura ro­ma­nesca se dilui na des­crição dos factos his­tó­ricos (as In­va­sões fran­cesas e a guerra civil entre li­be­rais e ab­so­lu­tistas; a di­ta­dura si­do­nista; a guerra civil de Es­panha, as pri­sões da PIDE, etc.) que servem de es­teio a um pro­cesso lento e so­frido de gra­dual to­mada de cons­ci­ência da per­so­nagem cen­tral deste ro­mance, Ma­nuel da Lousa, através da vi­vência e per­cepção crí­tica da re­a­li­dade que o cerca e agride.

A saga de Ma­nuel co­meça no dia em que, in­sub­misso e obs­ti­nado, foge do quartel de Cas­telo Branco e parte a salto para Cá­ceres. Aí irá tornar-se car­pin­teiro, casar com a filha do pa­trão, Don Pablo, um re­pu­bli­cano cau­te­loso. Tudo pa­rece correr bem até que o pro­nun­ci­a­mento dos re­vol­tosos contra o go­verno le­gí­timo da II Re­pú­blica, a 17 de Julho de 1936, vem pôr cobro a um per­curso de vida que pa­recia ter tudo para dar certo. Ma­nuel, ao qual o pro­cesso po­lí­tico es­pa­nhol pouco dizia, apesar das con­versas que man­tinha com o sogro, pro­nuncia-se em pú­blico contra os fa­lan­gistas e é obri­gado a fugir. A guerra, e o ódio, o terror im­posto pelos se­quazes de Franco farão o resto: Ma­nuel irá pagar cara a sua in­ge­nui­dade. Os tempos são in­certos e vi­o­lentos, os de­mó­nios têm rosto e voz, vêm do Norte de África, dos campos de Mar­rocos, dos in­te­resses acan­to­nados à sombra das armas dos fas­cistas, da Igreja, da Itália de Mus­so­lini, da Ale­manha nazi, todos contra a li­ber­dade, aos gritos de viva la mu­erte.

Ma­nuel será preso e per­ma­ne­cerá sete anos nas mas­morras fas­cistas, sem culpa for­mada, sem di­reitos, sem con­se­guir saber da fa­mília. Está morto, dirão à mu­lher Anas­tásia. Em Es­panha há mortos por todo o campo, nas al­deias, nas vilas, nas ci­dades: o terror, a de­lação, o ódio entre vi­zi­nhos, a fome que tudo ar­rasta, que en­lou­quece.

Para que se não es­queça

São pá­ginas pun­gentes aquelas em que Pádua, com uma es­crita no gume do re­a­lismo his­tó­rico, des­creve os hor­rores do con­flito. «Mais uma prova da bai­xeza dos fas­cistas, a de­núncia», pensa Ma­nuel, re­ce­ando o fu­zi­la­mento. Em seis anos, de 1939 a 1944, 0,7% da po­pu­lação foi exe­cu­tada às mãos dos fran­quistas, quase 200 mil pes­soas. Entre Julho de 1936 e Março de 1939 ou­tras tantas foram fu­zi­ladas, em re­pre­sá­lias contra re­pu­bli­canos, co­mu­nistas, anar­quistas, ou sim­ples sus­peitos de sim­patia pelo go­verno le­gí­timo. O autor ins­creve neste texto, quase um ma­nual do terror fas­cista, os in­crí­veis nú­meros da ver­gonha e da bar­bárie. Para que se não es­queça.

Ma­nuel, três anos após a prisão no Con­vento de San Marcos, irá fi­nal­mente a jul­ga­mento, um jul­ga­mento fan­toche. Dirá que não se acha cul­pado de nada, para além de um de­sa­bafo in­tem­pes­tivo, para mais «sou por­tu­guês». À ava­li­ação mordaz e cí­nica do co­ronel fas­cista, «Se é por­tu­guês devia ter or­gulho na ajuda que Sa­lazar prestou à causa de Es­panha», Ma­nuel irá ab­jurar para salvar a pele: «E tenho, meu co­ronel. Muito». E desse modo es­capa ao fu­zi­la­mento.

Ma­nuel irá evadir-se das pri­sões fran­quistas, vi­si­tará a fa­mília mas, acos­sado pela Guardia Civil, re­tor­nará a Por­tugal. Será preso, sus­peito de ser co­mu­nista e cúm­plice dos rojos, e en­cer­rado em Ca­xias. É no­tável a forma como Pádua des­creve o in­te­rior da prisão, diz os medos e as in­de­ci­sões da PVDE (afinal, mesmo com a vi­tória de Franco sobre a Re­pú­blica, os so­vié­ticos e os ali­ados ti­nham des­tro­çado o na­zismo, o tal que iria durar mil anos), o con­vívio e a so­li­da­ri­e­dade entre os presos. Aí, Ma­nuel irá travar co­nhe­ci­mento com ou­tros presos po­lí­ticos, fre­quen­tará a es­cola ope­rária, onde os presos le­trados en­sinam os menos ape­tre­chados de sa­beres. Ma­nuel re­a­pren­derá a língua, apren­derá os modos de re­sistir ao medo e aos al­gozes.

Mário Mou­tinho de Pádua traça neste livro, com ar­gúcia e ob­jec­ti­vi­dade, a his­tória da pri­meira me­tade do sé­culo XX pe­nin­sular. His­tória que faz pro­gredir e jus­ti­fica a saga de Ma­nuel e dos que lhe são pró­ximos. Ví­tima de um tempo em que o terror e a in­fâmia an­davam à solta por al­deias, vilas e ci­dades dos dois países ibé­ricos. Tempo em que, em Es­panha, se vivia num fio de bai­o­netas sobre chão de ca­dá­veres, e em Por­tugal se er­guiam muros de si­lêncio e campos de con­cen­tração.

É da vi­o­lência ex­trema, quase de­men­cial, que al­guns ho­mens são ca­pazes de exercer sobre os seus iguais, que este livro trata. Sem con­tem­pla­ções.

Ma­nuel e a sua Fa­mília, de Mário Mou­tinho de Pádua – Edição Pá­gina a Pá­gina

 



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