A vida a curto prazo

Correia da Fonseca

Acon­tece como que ci­cli­ca­mente desde que surja o en­sejo: vol­taram a fazer-se ouvir na te­le­visão, e de­certo não só, vozes a ten­tarem jus­ti­ficar sem qual­quer li­mi­tação efec­tiva os con­tratos de tra­balho a prazo e a re­me­terem para um pas­sado já não re­cu­pe­rável os con­tratos de tra­balho sem termo certo. Assim se vai ten­tando cum­prir uma já não re­cente pro­fecia si­nistra que nos avisa do fim dos «em­pregos para a vida», isto é, que se aplica a con­vencer os tra­ba­lha­dores a con­for­marem-se com uma exis­tência em que nada lhes es­teja as­se­gu­rado: nem a pos­si­bi­li­dade de cons­ti­tuírem fa­mília, nem a de terem fi­lhos e um tecto para abrigo, nem a de pros­se­guirem uma car­reira pro­fis­si­onal es­tável, nem a pers­pec­tiva de uma ve­lhice mi­ni­ma­mente con­for­tável. Tudo mau para todos? Nada disso: tudo bem para al­guns. Tudo bem, de­sig­na­da­mente, para quem só se sinta con­for­tável se puder subs­ti­tuir fa­cil­mente tra­ba­lha­dores que não sejam su­fi­ci­en­te­mente dó­ceis, para em­pre­sa­riado que queira ter mão-de-obra sempre re­ceosa de não ver re­no­vado o seu con­trato na se­guinte es­quina do tempo, efec­tivos es­cravos in­vi­si­vel­mente acor­ren­tados a um sempre pos­sível ca­pricho do pa­tro­nato. É, para o tra­ba­lhador, o fim da pos­si­bi­li­dade de res­pirar fundo ao en­carar o fu­turo. É, de facto, o fim de um dado ci­vi­li­za­ci­onal.

A regra e as ex­cep­ções

É neste quadro que chegam à te­le­visão e ou­tros media si­nais de uma ofen­siva, por vezes surda e ou­tras vezes nem tanto, de­sen­ca­deada para de­fesa da pre­ca­ri­e­dade dos con­tratos de tra­balho em con­tra­dição com a ne­ces­si­dade mais do que jus­ti­fi­cada, de facto ética e ci­vi­ca­mente in­dis­pen­sável, do com­bate pela sua ex­tinção sempre que se trate de postos de tra­balho de ca­rácter per­ma­nente, isto é, cuja ma­nu­tenção é es­sen­cial para o fun­ci­o­na­mento da em­presa, seja ela pri­vada ou si­tuada no âm­bito pú­blico. Apa­ren­te­mente, aos tra­ba­lha­dores não sobra outro des­tino que não seja o de servir o seu amo en­quanto este o queira e partir para des­tino in­certo e sempre ten­den­ci­al­mente an­gus­ti­ante logo que assim o en­tenda quem pode e manda. Nos ve­lhos e talvez para al­guns bons tempos da es­cra­va­tura, com­petia ao dono dos tra­ba­lha­dores prover mi­ni­ma­mente a ali­men­tação e o alo­ja­mento mí­nimos da mão-de-obra que pos­suía; agora, a ten­dência rei­vin­di­cada sim­pli­fica as coisas: basta ex­pulsar o tra­ba­lhador graças à ex­ce­lente in­venção que é o con­trato a prazo e tudo fica bem. Ex­cepto, é claro, para a exis­tência de um mero pro­jecto de vida, para a pos­si­bi­li­dade de cons­ti­tuição de novas fa­mí­lias (com con­sequên­cias sobre o de­se­jável com­bate à já tão de­nun­ciada crise de­mo­grá­fica), ex­cepto para a es­pe­rança de uma ve­lhice digna, ex­cepto para a dig­ni­dade pro­fis­si­onal do tra­ba­lhador. Ex­cepto também para quantos não queiram aceitar uma si­tu­ação de in­fâmia so­cial ins­ti­tu­ci­o­na­li­zada. Talvez se deva acres­centar: ex­cepto para os co­mu­nistas.




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