O Esplendor da Memória

Domingos Lobo

Re­sis­tindo a esta con­tra­cul­tura global do sé­culo XXI

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Um Homem Dois Sé­culos – de Fer­nando Mi­guel Ber­nardo
Gente do Porto – de Au­gusto Bap­tista

1. Fer­nando Mi­guel Ber­nardes, poeta, es­critor de me­mó­rias so­fridas sobre o tempo das mas­morras e dos cha­cais ver­tidas nesse pun­gente tes­te­munho que é Uma For­ta­leza de Re­sis­tência – Pe­niche 1934 – 1974, de li­te­ra­tura para a in­fância e de vasta obra no seu es­paço mais lesto, o da po­esia, dá-nos agora, através da co­lecção Me­mória Pe­re­cível, da AJHLP1, um livro a vá­rios tí­tulos ines­pe­rado e re­con­for­tante, no qual o autor in­veste vasto acervo his­tó­rico-so­ci­o­ló­gico e o pre­enche com uma es­crita plena de in­ten­si­dade, de afectos, de dores ainda em fe­rida; pa­tri­mónio he­te­ro­géneo de quem viveu um tempo es­tranho e trans­porta con­sigo as marcas im­pe­re­cí­veis dos dias per­versos.

Em Um Homem, Dois Sé­culos, Ber­nardes in­tegra tes­te­mu­nhos, contos, vi­vên­cias raras que per­correm a se­gunda me­tade do sé­culo XX (as lutas es­tu­dantis, os Tri­bu­nais Ple­ná­rios, as pri­sões do fas­cismo, a es­crita como fron­teira de re­sis­tência, a in­ter­venção cí­vica ou os dias so­lares de Abril), e chega ao sé­culo XXI com a cer­teza e o op­ti­mismo de quem sabe que é pela luta que vamos e que as es­tradas se abrem pelas nossas pró­prias mãos e um dia... con­dição de quem está vivo e in­quieto, como neste livro, num texto de­di­cado a Ur­bano, o autor não deixa de afirmar: re­sis­tindo a esta con­tra­cul­tura global do sé­culo XXI.

O humor, o atento olhar aos por­me­nores que des­creve com apu­rada des­treza, o poeta, sen­sível pers­cru­tador de signos epo­cais, a me­mória emo­tiva, vi­brátil e lú­cida, atra­vessam estas es­tó­rias, este fe­cundo lastro que a vida re­co­lheu, o seu mais in­tenso rumor, o húmus e o lixo e, com essa frágil ma­téria, através dela, con­se­guiu cons­truir textos que nos ajudam a per­correr abismos e cla­ri­dades, um tempo e um es­paço sa­fados mas sin­gu­lares, que Ber­nardes fixa e traz para este livro, trans­for­mando o es­plendor da me­mória na ma­téria ful­cral do pro­cesso di­e­gé­tico.

2. Au­gusto Bap­tista, fo­tó­grafo e de­signer, sabe que o olhar, o acto de olhar e ver, tem formas vá­rias onde o pos­samos fixar. Es­co­lheu as pa­la­vras, sub­jec­tivo ins­tru­mento, a sua mo­du­lação sin­tác­tica, afec­tiva, poé­tica, sa­bendo que elas, as pa­la­vras, trans­portam ou­tros rasgos, pla­ni­ficam ou­tros sen­tidos ra­ci­o­nais e me­ta­fí­sicos, para nos dizer o Porto es­sen­cial, o co­ração que nele sangra. Su­porte ba­rato e aces­sível para passar ao outro o que se viu e se traz guar­dado nos es­consos da me­mória, o seu mais sen­si­tivo, árduo pro­lon­ga­mento, as pa­la­vras.

Os textos deste Gente do Porto diz um Porto que já não existe ou, a existir em ín­fimas franjas, está acan­to­nado nas «ilhas» que restam; este povo do Porto, deste Porto que vibra e sofre, que ri e exas­pera neste livro de Bap­tista, ou es­tará morto e en­ter­rado, ou terá sido ex­pulso da ci­dade pela usura ca­pi­ta­lista. A Árvore de Pé Des­calço, essa mu­lher feita ár­vore no car­rego de car­queja, é hoje apenas visão ro­mân­tica de um Porto rural e pobre, de uma re­a­li­dade sá­dica e vi­o­lenta onde era crime não ter di­nheiro para com­prar sa­patos. Como serão nos­talgia mansa as me­mó­rias do fo­tó­grafo Fer­nando Pedro, que fixou na chapa as pri­meiras peças do TEP e que An­tónio Pedro con­si­de­rava ser «um ad­mi­rável ar­tista»; sau­dade será de um Porto per­dido, o que estes «re­tratos» de Au­gusto Bap­tista re­cu­pera de modo ar­guto e sen­si­tivo, entre os quais o de Do­mingos Vi­eira, to­cador de trom­bone na sua, ainda viva, Banda Mar­cial da Foz do Douro; ou o Jo­a­quim Lopes, re­sis­tente ao tifo, à tu­ber­cu­lose e a fomes vá­rias, ven­dedor de jor­nais desde os 12 anos, trin­ta­nário aos 60, em farda ca­tita na por­taria de um hotel de luxo.

Uma pró­diga ga­leria de re­tratos, estes de Au­gusto Bap­tista, quase uma vin­tena, amargos uns, to­cantes, emo­tivos, ín­timos e cúm­plices quase todos, es­critos com só­bria li­sura; bi­o­gra­fias breves de gente que po­voou a ci­dade, que lhe deu voz e chama, que a tornou sin­gular; gente que cal­cor­reava des­calça as ondas desse chão, que in­ven­tava pelo tra­balho os modos de estar viva, que à ci­dade em­pres­tava um mais hu­mano rosto.

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1 As­so­ci­ação dos Jor­na­listas e Ho­mens de Le­tras do Porto




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