Morte de um Caixeiro-Viajante, de Arthur Miller, pela Companhia de Teatro de Almada

Entre o sonho e a realidade

Domingos Lobo

A obra surge num pe­ríodo feroz e de­su­mano do ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano

RUI MA­TEUS


O es­critor e crí­tico li­te­rário Wil­liams Dean Howells (1837/​1920) de­fendia que a li­te­ra­tura devia em­pe­nhar-se cri­ti­ca­mente na de­núncia das in­jus­tiças so­ciais, que cabia aos au­tores a de­fesa e a pro­cura de ca­mi­nhos justos para um maior equi­lí­brio so­cial. Só nesse em­penho, nessa luta pela dig­ni­dade dos seus con­ci­da­dãos, o es­critor seria digno de res­peito e a sua su­pe­rior função in­tei­ra­mente cum­prida.

Au­tores como John Stein­beck e Dos Passos mos­trar-se-iam dignos con­ti­nu­a­dores desses éticos prin­cí­pios.

Coube ao te­atro, e ao te­atro de Arthur Miller em par­ti­cular, à força mag­né­tica da pa­lavra dita pelos ac­tores, ser ins­tru­mento pri­vi­le­giado de re­flexão e de­núncia sobre as causas e con­sequên­cias do de­sastre so­cial que foi o crash de 1929 e os re­sul­tados sub­se­quentes que es­ti­veram na gé­nese de ou­tras e mais am­plas tra­gé­dias.

O pós-guerra per­mi­tiria ao ca­pi­ta­lismo dos EUA um novo fô­lego, com Truman pro­mo­vendo uma po­lí­tica ex­pan­si­o­nista e de con­sumo, a pro­pa­ganda do sonho ame­ri­cano, o ma­carthismo a per­se­guir quantos ou­sassem ma­ni­festar-se contra a ide­o­logia do­mi­nante; a eleger os ven­ce­dores e a aban­donar à sua sorte todos aqueles que se sen­tiam in­ca­pazes de en­caixar na ra­pace caus­ti­ci­dade do sis­tema.

O dra­ma­turgo Arthur Miller re­flec­tirá na sua obra-prima Morte de um Cai­xeiro-Vi­a­jante (1949), através da per­so­nagem Willy Loman, o pe­ríodo feroz e de­su­mano do res­ta­be­le­ci­mento do pro­jecto ide­o­ló­gico que tem como ob­jec­tivo a ex­plo­ração e o lucro, a par do su­cesso in­di­vi­dual como base dou­tri­nária: a sa­cra­li­zação do di­nheiro, modo e motor de pro­jecção e acei­tação so­cial. Loman é um per­dedor, al­guém que so­nhou in­ge­nu­a­mente um mundo outro, que ima­ginou até à ab­surda mi­ti­fi­cação uma Amé­rica que não existia, que não existe; uma so­ci­e­dade em que todas as opor­tu­ni­dades sur­gi­riam e a fe­li­ci­dade era pos­sível. Até que a brutal re­a­li­dade o es­bo­fe­teia, do­mina e vence.

Loman sa­berá, tar­di­a­mente, que é uma má­quina que já não rende, que é des­car­tável, que já não en­caixa num mundo em rá­pida trans­for­mação, que não en­tende, que o irá hu­mi­lhar até ao de­ses­pero. Quando, no en­contro com o pa­trão, quase su­pli­cante, vai bai­xando a fas­quia da sua pro­posta de um sa­lário de 100 dó­lares se­ma­nais para uns ir­ri­só­rios 40, o pa­trão, sem se­quer o ouvir, dirá a um ató­nito Loman, fri­a­mente, que está des­pe­dido, mesmo quando este lhe re­corda que tra­ba­lhou ali mais de trinta anos e deu à firma muito di­nheiro a ga­nhar. Mas o ca­pital não tem rosto, é um es­ti­lete frio e grave, tem ur­gên­cias, pri­o­ri­dades e muitos brin­quedos para ocupar o ócio: não se ocupa com mi­nu­dên­cias.

Loman é, neste so­berbo texto de Miller, que con­tinua ac­tu­a­lís­simo, o sím­bolo do fra­casso do sonho ame­ri­cano, al­guém que acre­di­tava nesse sonho, que de­li­ran­te­mente en­fa­ti­zava até se perder no seu pró­prio la­bi­rinto. Só então des­per­tará para a re­a­li­dade que o cerca: Que mundo este em que um homem vale mais morto que vivo.

A en­ce­nação de Carlos Pi­menta cria um es­paço amplo e des­po­jado no vasto palco do Te­atro Jo­a­quim Be­nite, em Al­mada: ca­deiras, mesas, al­guns ade­reços, e deixa toda a cena, a ampla res­pi­ração sim­bó­lica da peça, aos ac­tores, e aos im­pres­sivos ví­deos de João Pedro Fon­seca. O es­paço em que todo o drama acon­tece, com os ac­tores num re­gisto quase na­tu­ra­lista mas onde a emoção su­blinha, e su­blima, o po­de­roso texto de Miller, com só­bria e eficaz forma de o re­pre­sentar, de o tornar ac­tu­ante e crí­tico.

A uma das in­ter­ro­ga­ções que Carlos Pi­menta en­tende serem pos­sí­veis para a lei­tura deste es­pec­tá­culo, Como se medem os so­nhos?, acres­cento uma outra: É justa uma so­ci­e­dade em que os so­nhos dos ho­mens se não possam cum­prir?

Por tudo o que aqui se re­gista, é óbvio que vale a pena, uma vez mais, ir a Al­mada: o bom Te­atro (também) mora ali.

 



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