O Amor, o Dinheiro e o Pecado, de Olavo d’Eça Leal/Armando Caldas

Domingos Lobo

A vida não tem que ser sempre trá­gica – como o te­atro, de resto

O In­ter­valo Grupo de Te­atro é, no ac­tual pa­no­rama do te­atro por­tu­guês, um caso sin­gular, não apenas pela cons­tância e per­sis­tência de uma ac­ti­vi­dade te­a­tral re­le­vante, como pelo tipo de te­atro que de­sen­volve e pela qua­li­dade que pro­cura sempre im­primir aos seus es­pec­tá­culos. A co­esão e du­ra­bi­li­dade desta ex­pe­ri­ência cri­a­tiva só foi, é pos­sível, graças à ca­pa­ci­dade or­ga­ni­za­dora e de di­ri­gente do no­tável homem de te­atro que Ar­mando Caldas, re­co­nhe­ci­da­mente, é, e a uma equipa de ac­tores e téc­nicos que com ele tra­balha e a este pro­jecto se de­dica com ta­lento e ge­ne­ro­si­dade, da qual me per­mito sa­li­entar, por me pa­recer de ele­mentar jus­tiça, dois ac­tores que há muitos anos ajudam a er­guer, no In­ter­valo, o má­gico efé­mero que o te­atro trans­porta: Fer­nando Ta­vares Mar­ques e João José Castro e saudar o re­gresso de Hélder Ana­cleto.

Criado em 1969, no então 1.º Acto, em Algés, o Grupo trans­fere-se dé­cadas mais tarde para um novo e aco­lhedor es­paço, o Au­di­tório Mu­ni­cipal Lourdes Nor­berto, em Linda-a-Velha, pas­sando a de­signar-se In­ter­valo – Grupo de Te­atro. Cin­quenta anos de ac­ti­vi­dade e mais de uma cen­tena de peças en­ce­nadas, o In­ter­valo con­se­guiu firmar um pú­blico fiel, que desde sempre acom­panha as re­a­li­za­ções do Grupo, ao qual vem ade­rindo um pú­blico jovem, atento e se­du­zido pela mul­ti­pli­ci­dade de op­ções es­té­ticas e te­má­ticas, da cri­te­riosa es­colha dos au­tores e dos textos pro­postos, do rigor e ho­nes­ti­dade in­te­lec­tual e ar­tís­tica que os seus es­pec­tá­culos sempre re­velam.

Exer­cício lú­dico

Ar­mando Caldas con­se­guiu con­ceber no In­ter­valo al­gumas ex­pe­ri­ên­cias que me pa­recem per­ti­nentes ca­mi­nhos de um pro­jecto te­a­tral pos­sível, so­ci­al­mente abran­gente e, em termos cul­tu­rais, sín­tese da­quilo que Ber­nard Shaw nos diz sobre o texto dra­má­tico no qual Todas as ques­tões so­ciais, nas­cendo ne­ces­sa­ri­a­mente de um con­flito entre o sentir do homem e as cir­cuns­tân­cias po­lí­ticas e tem­po­rais, cons­ti­tuem ma­téria para o drama.1 O In­ter­valo tem pro­vado ao longo dos anos ser pos­sível en­cenar grandes au­tores (Ibsen, Torga, Brecht, Gol­doni, Gar­rett, Sha­kes­peare, Karl Va­lentim, Re­gi­nald Rose, Ra­cine, etc.) tor­nando esse exer­cício lú­dico fes­tivo e grato a um pú­blico de não ini­ci­ados; pro­vando que o te­atro po­pular não pre­cisa ser im­becil e ras­teiro e que o grande te­atro não tem de ser her­mé­tico e in­to­le­ra­vel­mente en­fa­donho e eli­tista. O novo es­pec­tá­culo do In­ter­valo, a sua 109.ª pro­dução, in­sere-se nesse com­pro­misso.

Através da farsa trá­gica O Amor, o Di­nheiro e a Morte, de Olavo d’Eça Leal, peça es­treada no Trin­dade em 1960, com en­ce­nação de Ri­bei­rinho, Ar­mando Caldas, que as­sumiu também a dra­ma­turgia cri­ando um pró­logo pleno de si­nais aos con­tem­po­râ­neos e anu­lando do texto ori­ginal o trá­gico do 3.º acto, re­ti­rando a Morte e in­cluindo nesta versão um mais ágil e trans­gressor Pe­cado, em que o Bem e o Mal di­a­lec­ti­ca­mente se con­frontam, es­ta­be­le­cendo uma sa­lutar em­patia com os es­pec­ta­dores ao mesmo tempo que lhes não so­nega a ca­pa­ci­dade crí­tica, in­ves­tindo no dis­curso te­a­tral dados que re­metem para a ac­tu­a­li­dade: das com­plexas re­la­ções amo­rosas à eco­logia, da usura e do poder se­dutor que o di­nheiro ainda exerce sobre as hu­manas cri­a­turas, ao dever de pre­ser­vação da me­mória e dos es­paços verdes da ci­dade. Como acon­tece em todas as farsas ro­mân­ticas, tudo acaba bem, porque a vida não tem que ser sempre trá­gica – como o te­atro, de resto.

1 Ber­nard Shaw, in Es­té­tica Te­a­tral – An­to­logia de textos, de José Oli­veira Ba­rata, p.115, Ed. Mo­raes, Lisboa, 1981




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