Um murro colorido num Portugal cinzento

Manuel Augusto Araújo

É a ca­pa­ci­dade das pe­ri­fe­rias para fa­zerem des­vios

A ex­po­sição Pós-Pop, Fora do Lugar Comum, na ga­leria prin­cipal da Fun­dação Ca­louste Gul­ben­kian, exibe obras re­a­li­zadas por ar­tistas por­tu­gueses e in­gleses no pe­ríodo entre os anos 1965 e 1975. Duas datas que de­finem um pe­ríodo em que Por­tugal vivia o tempo dra­má­tico das guerras co­lo­niais, a de An­gola tinha co­me­çado em 1961, Guiné-Bissau 1963, Mo­çam­bique 1964, até à Re­vo­lução de Abril que der­rubou a di­ta­dura, acabou com as guerras, ne­go­ciou a in­de­pen­dência das co­ló­nias. A re­fe­rência ex­plí­cita a essas duas re­a­li­dades é re­pre­sen­tada pela es­cul­tura de Clara Me­néres, Jaz Morto e Ar­re­fece, O Me­nino da sua Mãe, um sol­dado em ta­manho na­tural dei­tado sobre um fé­retro me­tá­lico, co­lo­cada no centro de uma sala em que nas pa­redes estão ex­postas obras com os traços bem ca­rac­te­rís­ticos da arte dessa época, bri­lhantes, lu­mi­no­sa­mente co­lo­ridas, muito sexy up-to-date, o que acentua o tom dra­má­tico da es­cul­tura de Me­néres. A outra re­fe­rência, a fe­char a ex­po­sição, é a pin­tura de Ni­kias Ska­pi­nakis que re­trata o 25 de Abril como grande festa po­pular, re­cu­pe­rando e trans­fi­gu­rando o cé­lebre quadro de De­la­croix, A Li­ber­dade Gui­ando o Povo, pin­tura icó­nica da Re­vo­lução Fran­cesa. Um quadro em que Ska­pi­nakis con­densa a lin­guagem da pop-art e as suas de­rivas em Por­tugal, no que é a sin­taxe do seu tra­balho no pe­ríodo final que es­teve bem re­pre­sen­tada na ex­po­sição Pre­sente e Pas­sado (2012-1950) or­ga­ni­zada por Ra­quel Hen­ri­ques da Silva no Museu Co­lecção Be­rardo.

Essas duas obras de algum modo as­si­nalam o tempo cro­no­ló­gico das ou­tras obras ex­postas.

As cu­ra­doras desta ex­po­sição co­lec­tiva, Ana Vas­con­celos e Pa­trícia Rosas, fi­zeram uma se­lecção cri­te­riosa e bem re­pre­sen­ta­tiva dessa época, re­cu­pe­rando Fá­tima Vaz, uma ar­tista que morreu cedo e, na al­tura, não teve o re­co­nhe­ci­mento que lhe era de­vido; Ruy Leitão, tra­gi­ca­mente de­sa­pa­re­cido quando o fu­turo lhe abria as portas; Maria José Aguiar que tem uma ex­tensa obra mas que se re­meteu vo­lun­ta­ri­a­mente ao si­lêncio; uma quase es­que­cida Luísa Cor­reia Pe­reira; Te­resa Ma­ga­lhães com pin­turas iné­ditas no­tá­veis. Há ainda obras des­co­nhe­cidas de João Cu­ti­leiro e José Gui­ma­rães, com tra­ba­lhos em que uti­li­zaram os re­cursos vi­suais da pop para os res­ga­tarem do seu pendor con­su­mista e su­per­fi­cial com poé­ticas sur­re­a­listas e um traço grosso de cons­ci­ência so­cial, que é a tó­nica que per­corre toda a ex­po­sição ilus­trada com fo­to­gra­fias, do­cu­mentos, mú­sicas e ima­gens dos ar­quivos da RTP desses anos, o das mini-saias e do ié-ié dos Be­a­tles que ir­rom­piam num Por­tugal bo­lo­rento.

Fazer des­vios

Dizem as cu­ra­doras que «os ar­tistas por­tu­gueses per­cebem muito bem o que está em causa na pop, e cri­ticam-na, trans­cendem-na. É a ca­pa­ci­dade das pe­ri­fe­rias para fa­zerem des­vios».É isso que fica su­bli­nhado nas duzentas e quinze obras, das quais cerca de vinte iné­ditas. Isso e como bem es­cla­rece Pe­ne­lope Curtis no texto do ca­tá­logo, a di­fe­rença entre os ar­tistas pós-pop em In­gla­terra, que as­su­miam uma feição mais li­geira, en­quanto em Por­tugal «esta se­gunda vaga da pop foi mar­cada por um ca­rácter in­tros­pe­tivo, mas também pela emer­gência de uma lin­guagem mais con­tun­dente, ade­quada à crí­tica vi­sual feita a um re­gime opres­sivo». O que acaba por gerar uni­dade na enorme plu­ra­li­dade e di­ver­si­dade das obras aqui apre­sen­tadas de, entre ou­tros além dos já re­fe­ridos, Pa­lolo, Menez, Edu­ardo Ba­tarda, Ma­nuel Bap­tista, Lurdes Castro, Sérgio Pombo. Uma ge­ração de ar­tistas por­tu­gueses que, à se­me­lhança dos ar­tistas das ge­ra­ções an­te­ri­ores, es­ca­pavam e ilu­diam a me­di­o­cri­dade que se vivia em Por­tugal, var­riam o pó que chovia pe­sada e per­sis­ten­te­mente no País com os ventos lon­drinos, quando Lon­dres se tinha tor­nado o centro ir­ra­di­ante das artes vi­suais na Eu­ropa, ocu­pando o lugar an­te­ri­or­mente ocu­pado por uma Paris que se tinha es­go­tado.

Uma ex­po­sição para ir ver até 10 de Se­tembro.

 



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