Do Festival e do fogo, entre Lisboa e a Palestina

Manuel Pires da Rocha

Ofe­recem aos olhares en­can­tados uma re­a­li­dade de zeros-e-uns

LUSA


«Mú­sica não é fogo de ar­ti­fício, mú­sica é sen­ti­mento!», lançou Sal­vador So­bral aos muitos que, por todo o mundo, o es­cu­tavam no final do Fes­tival. Dita no palco de um dos eventos mais ar­ti­fi­ciais e fo­ga­cheiros do mundo do es­pec­tá­culo, a sen­tença soou a pro­testo. Houve mesmo quem visse na­quelas pa­la­vras a ar­ro­gância que é traço de certos ven­ce­dores. Mas não. As pa­la­vras do ar­tesão nunca são so­berba, quando muito serão sen­ti­mento.

Jus­tiça lhe seja feita, o Fes­tival da Eu­ro­visão nunca foi o evento inócuo que al­guns lhe querem ver. A «in­dús­tria» do en­tre­te­ni­mento, a quem cabe (com as­si­na­lável efi­cácia) gerar os pro­dutos de en­tor­pecer re­fle­xões e ori­entar o gosto das massas, quando abre os cor­dões à bolsa nunca é em vão. Por isso, ano após ano, há can­tigas e há também, sempre que se jus­ti­fica, a ma­te­ri­a­li­zação fes­tiva do ar­gu­men­tário de um dos lados da ba­talha ide­o­ló­gica.

A fór­mula é a ha­bi­tual: a da com­pe­tição entre países, mesmo que às ban­deiras na­ci­o­nais cor­res­pondam textos ca­noros que re­nun­ciam ao uso da res­pec­tiva língua pá­tria. Não se julgue, porém, que a ge­ne­ra­li­zação an­gló­fona tenha por ob­jec­tivo dizer o que, de im­por­tante, pre­ci­sasse de ser dito num idioma que muitos en­ten­dessem. Nada disso. Trata-se de uma questão de «pro­vin­ci­a­nismo» global, uma es­pécie de fu­ti­li­dade sub­ser­vi­ente a favor de uma uni­dade lin­guís­tica cujo único efeito prá­tico é privar o es­pec­tá­culo da mu­si­ca­li­dade de cada idioma, a mais bela das qua­li­dades dos lin­gua­jares da Hu­ma­ni­dade.

A men­sagem geral dos textos mu­si­cados é a de um amor ge­né­rico – pa­la­vras para apenas estar, tes­te­mu­nhas qui­etas dos tais fi­reworks a que So­bral se re­feria. Já a mú­sica é ma­téria que se re­co­nhece do re­por­tório da in­dús­tria anglo-sa­xó­nica, pro­du­zida com com­pe­tência mas sem rasgo. É o menu dos The Voice, Pop Idol, Got Ta­lent e de­mais «con­teúdos» te­le­vi­sivos re­pe­tindo, ad nau­seam, meia dúzia de fór­mulas que são, afinal, a banda so­nora dos gostos mu­si­cais de mi­lhões de con­for­mados con­su­mi­dores.

Sem pre­tender di­famar qual­quer das can­ções apre­sen­tadas, nunca aquelas che­ga­riam para, por si só, jus­ti­fi­carem o es­pec­tá­culo. Ao di­vulgar os meios téc­nicos e hu­manos en­vol­vidos na ope­ração, a RTP re­velou o ver­da­deiro trunfo do Fes­tival da Eu­ro­visão: as mãos ca­pazes de «mover» as luzes, os ventos, os fumos, as cri­a­ções da­queles que ofe­recem aos olhares en­can­tados uma re­a­li­dade de zeros-e-uns.

Mesmo que o re­gu­la­mento es­ta­be­leça que «não serão per­mi­tidos quais­quer gestos, le­tras ou dis­cursos de na­tu­reza po­lí­tica», não te­remos de re­cuar muito – sa­be­dores da proi­bição da pre­sença da can­tora russa em Kiev – para per­ce­bermos quem manda no Fes­tival no mo­mento de fazer es­co­lhas po­lí­ticas. Talvez por sabê-lo, ao subir ao pódio, a ti­tular da canção ven­ce­dora desta edição de 2018 não se ficou pelas pa­la­vras de agra­de­ci­mento. Atirou, com óbvia in­tenção po­lí­tica, que «para o ano [será] em Je­ru­salém». Ne­tanyahu logo viria juntar-se ao coro para dizer assim: «pa­ra­béns, Je­ru­salém. A Eu­ro­visão chega a Je­ru­salém e abre a em­bai­xada dos EUA».

Dois dias de­pois da festa, no chão de Je­ru­salém, na Pa­les­tina, caíram ba­le­ados 61 dos dali (e se­riam fe­ridos mais de dois mil). Afinal, Sal­vador, dos fogos em que o Fes­tival da Eu­ro­visão se en­volve, o de ar­ti­fício é o menos pe­ri­goso.

 



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