Os empecilhos

Correia da Fonseca

Como lhe cumpre, a TV in­formou-nos de que os se­nho­rios dos apar­ta­mentos ar­ren­dados dis­cordam de qual­quer norma legal que os im­peça de des­pe­jarem in­qui­linos com mais de 65 anos de idade. Nada mais justo: com 65 anos ou mais, os ci­da­dãos ou ci­dadãs estão per­fei­ta­mente ca­pazes de des­cerem dos an­dares que até então ocu­pavam e de se ani­charem num qual­quer desvão da via pú­blica, a menos que um filho, se filho houver, tenha a ca­ri­dade de os en­caixar num ân­gulo do cor­redor de sua casa, se cor­redor houver e desvão também. Em al­ter­na­tiva ha­verá a des­cida à terra pro­pri­a­mente dita, uma vez que o ser hu­mano é pó como as Es­cri­turas re­cordam, ou a su­bida ao céu, porque o ser hu­mano talvez também seja fumo. O que é im­pe­rioso, isso sim, é que os in­qui­linos com mais de 65 anos sejam des­pa­chados para al­gures e li­bertem as casas para onde talvez te­nham ido morar quando ca­saram, onde ti­veram fi­lhos e os cri­aram, que ao longo de dé­cadas en­cheram com mó­veis e amor, para que o “«di­reito a ha­bi­tação» ceda o passo ao «ne­gócio da ha­bi­tação». Que esse é que tem pri­o­ri­dade. Até porque vem da di­reita, e a regra do Có­digo da Es­trada também é apli­cável neste como em muitos ou­tros casos, se­me­lhantes ou não. Adap­tando a estas si­tu­a­ções uma fór­mula apli­cada a outra área de ac­ti­vi­dades e oriunda dos States, que são bom sítio, di­remos que «the bu­si­ness must go on!”».

In­vi­o­la­bi­li­dade li­mi­tada

Porém, para além deste caso con­creto que al­guns podem con­si­derar ser de por­menor no con­junto de todas as ques­tões que se co­locam ao País, o epi­sódio, cha­memos-lhe assim, tem a uti­li­dade de re­velar como os di­reitos do ca­pital, tenha ele as di­men­sões que tiver, são con­si­de­rados pelos seus de­ten­tores de tal modo ab­so­lutos e im­pe­ra­tivos que se ins­talam sem quais­quer vi­sí­veis he­si­ta­ções sobre pro­vá­veis der­ro­cadas de vidas alheias. É claro que esta si­nistra regra se re­pete di­a­ri­a­mente em toda a ex­tensão das so­ci­e­dades or­ga­ni­zadas a partir de si­tu­a­ções fac­tuais em que a es­po­li­ação do fraco pelo forte é tida como na­tural e con­se­quen­te­mente justa. Re­gres­semos, porém, ao tema desta breve nota. Re­pete-se por vezes que o do­mi­cílio do ci­dadão é in­vi­o­lável e também, numa fór­mula fe­rida de exa­gero, que cada qual em sua casa é rei. De qual­quer modo, essa pre­su­mida se­gu­rança deixa de o ser na ca­be­cinha dos se­nhores se­nho­rios (perdoe-se o ple­o­nasmo) se es­tiver em questão o di­reito de ex­trair da sua pro­pri­e­dade todo o ren­di­mento que a si­tu­ação do mer­cado per­mita. Di­zendo de outro modo: o do­mi­cílio do ci­dadão só é in­vi­o­lável se não for o se­nhorio, isto é, o ca­pital, a bater à porta, caso em que o in­qui­lino com mais de 65 anos e even­tu­al­mente be­ne­fi­ciário de uma re­forma mi­nús­cula não terá mais do que emalar a trouxa e zarpar, como cantou o poeta para ou­tras cir­cuns­tân­cias. Obe­de­cendo, neste ainda apenas su­posto caso, a uma por agora só de­se­jada lei. Da selva.




Mais artigos de: Argumentos

Direito a ser criança

A todas as crianças deve ser assegurado o direito à protecção e a cuidados especiais, o direito à educação, ao conhecimento, à saúde, à habitação, à alimentação, ao vestuário; o direito à protecção social e ao abono de família; o direito à segurança e à integridade física; o direito à cultura,...

Ferreira de Castro e o realismo social

Se vivo, Ferreira de Castro (1898/1974) faria, a 24 de Maio, 120 anos. A sua pujante obra romanesca, iniciada aos 18 anos com o romance Criminoso por Ambição, faz a transição entre o naturalismo de pendor humanista, de finais do século XIX (João Grave, Albino Forjaz de Sampaio, Manuel Ribeiro,...