Narrativas Femininas, de Sérgio de Sousa

Domingos Lobo

Sérgio de Sousa as­sume uma con­cepção hu­ma­nista na forma como aborda o real

De­pois da pu­bli­cação de Comu­nistas Es­cri­tores, esse livro de as­sentos da li­te­ra­tura que ex­pressa a luta dos ho­mens por dias mais hon­rados, acervo in­con­tor­nável do me­lhor que a nossa li­te­ra­tura, nessa par­ti­cular ver­tente da ficção com­pro­me­tida, pro­duziu nas úl­timas dé­cadas, Sérgio de Sousa re­gressa à prosa com 11 nar­ra­tivas sobre o mul­tí­plice e es­quivo uni­verso das mu­lheres. Es­tó­rias em que o autor aborda os ter­ri­tó­rios fe­mi­ninos de modo exem­plar, numa es­crita solta, flu­ente e culta, des­nu­dando-lhes as an­gús­tias, os tra­ba­lhos, os medos, o amor, o en­ve­lhe­ci­mento, a so­lidão, as re­la­ções com­plexas com os fi­lhos, as rup­turas, a he­rança cul­tural, que ainda hoje as li­mita, o sexo, a po­breza e o re­me­deio, as mu­lheres cultas e as que, por con­dição so­cial ou ét­nica, não ti­veram acesso ao co­nhe­ci­mento, a an­ces­tral dis­cri­mi­nação.

Há na es­crita de Sérgio de Sousa um agudo sen­tido do real, uma voz, a do om­ni­pre­sente nar­rador, que in­fere esse uni­verso e no-lo dá a ver com im­pres­siva e subtil in­cisão.

A es­tru­tura nar­ra­tiva destas es­tó­rias, o en­vol­vi­mento sen­si­tivo e crí­tico que o autor nelas opera, as de­ri­vantes pul­sões dis­cur­sivas que vão do humor cáus­tico (o texto Sina, é exemplo de uma apu­rada arte de narrar), ao grave olhar so­cial, apro­fundam o que de Sérgio já sa­bíamos dos seus an­te­ri­ores textos: uma con­cepção hu­ma­nista na forma como aborda o real, como cruza na teia fic­ci­onal, sem ar­ti­fí­cios, os con­flitos, a mi­séria, as per­ple­xi­dades, a an­gústia e os risos deste pu­nhado de mu­lheres, de di­versas classes e ori­gens, eri­gindo-as pro­ta­go­nistas das in­con­gru­entes de­rivas deste nosso tempo.

Mesmo quando aborda ques­tões tri­viais dos quo­ti­di­anos fe­mi­ninos, a es­crita do autor de Res­tara-lhes o Sexo, mantém sempre um nível ele­vado de or­ga­ni­zação nar­ra­tiva, não apenas ao nível da cons­trução sin­tác­tica, mas nesse modo ar­teiro de pe­ne­trar esses uni­versos, com olhar in­quieto a des­bravar o ser, o estar, o vestir, de tratar do ar­ranjo da casa, de cozer bo­tões ou as calças dos ho­mens, de dis­cutir um filme ou um livro, de cor­rigir, pelos sa­beres ad­qui­ridos em ho­rário pós-la­boral, as ca­rên­cias for­ma­tivas que se não ge­raram em tempo justo.

Nestas es­tó­rias de mu­lheres, tão di­fe­rentes e tão pró­ximas de Certas Mu­lheres, de Ers­kine Caldwell, dado que estas de Sérgio de Sousa, vi­vendo as mar­gens de uma so­ci­e­dade que as se­grega com avo­engos aná­temas, ou da qual se sentem ex­cluídas, têm a co­ragem, a força de não de­sistir, de lutar, de do­minar azi­agos des­tinos.

Nada há de mais hu­mano do que contar uma es­tória e levar-nos a re­flectir sobre ela, e Sérgio de Sousa, es­co­lheu fazê-lo e, ao fazê-lo neste modo só­brio de contar as ba­na­li­dades da pe­quena bur­guesia, re­vela-nos o seu lado mais lu­mi­noso e ar­guto, con­voca-nos para o en­contro com o seu in­con­for­mismo: ou seja, faz da Li­te­ra­tura um es­paço de cons­ci­ência e in­qui­e­tação.

Contos re­a­listas per­cor­ridos pelo fan­tás­tico, atreitos aos có­digos do re­a­lismo. Contos que partem da vida de pes­soas co­muns, plas­mada sob o olhar crí­tico de Sérgio. Mas outro fô­lego, outra di­mensão per­corre estes textos: a ca­pa­ci­dade de in­ven­ta­ri­ação dessa par­ti­cular re­a­li­dade, o pro­cesso car­te­siano e mar­xista com que o autor pro­cede a essa aná­lise sem su­bal­ter­nizar, por um pe­ríodo se­quer, a ma­triz li­te­rária que os edi­fica.

As vidas ba­nais, as exis­tên­cias anó­nimas e vul­gares, são o leit-motiv destas nar­ra­tivas e, con­tudo, estes textos tocam-nos pelo que neles há de real e in­só­lito. O re­a­lismo des­cri­tivo de Sérgio, li­ber­tário e in­có­modo, torna estas mu­lheres pró­ximas, co­nhe­cemo-las assim, sa­bemo-las assim, irmãs, cu­nhadas, tias, mães: é tudo tão ver­dade que dói.

E até pa­rece fácil es­crever assim.




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