As relações da grande distribuição com a produção nacional

Manuel Guerreiro

ECO­NOMIA Re­flectir e de­fender a so­be­rania ali­mentar é um grande de­safio que, além de opor­tuno, está em linha com a his­tória do PCP, que sempre co­loca os in­teresses dos por­tu­gueses e o fu­turo de Por­tugal acima da «es­puma dos dias».

A grande disr­ti­buição passou a con­trolar o sector e moldou os há­bitos de abas­te­ci­mento e con­sumo

LUSA


A abor­dagem das re­la­ções entre a grande dis­tri­buição e a pro­dução na­ci­onal ali­mentar, em par­ti­cular a pe­quena e a média, vista na ló­gica da so­be­rania ali­mentar, exige que ainda que su­ma­ri­a­mente se re­flicta sobre as trans­for­ma­ções es­tru­tu­rais do co­mércio em Por­tugal e se re­corde como a grande dis­tri­buição se im­plantou no País nas úl­timas dé­cadas, em­bora com al­guns anos de atraso em re­lação ao que acon­teceu nos países da Eu­ropa oci­dental de­vido às trans­for­ma­ções ex­tra­or­di­ná­rias da Re­vo­lução do 25 de Abril de 1974.

A partir dos anos oi­tenta do sé­culo pas­sado, com o ad­vento da po­lí­tica de re­cu­pe­ração ca­pi­ta­lista, foram «abertas as portas» e dados apoios pelos go­vernos PS/​CDS, PS/​PSD e PSD à im­plan­tação ace­le­rada das grandes ca­deias da dis­tri­buição ali­mentar e não ali­mentar. Estas re­cu­pe­raram o atraso à força de impor con­di­ções le­o­ninas nas re­la­ções com for­ne­ce­dores na­ci­o­nais e tra­ba­lha­dores, pas­sando por cima de normas e re­gras re­la­tivas a prá­ticas co­mer­ciais, ho­rá­rios de aber­tura, con­di­ções de compra e prazos de pa­ga­mento, im­por­ta­ções, re­gu­lação das re­la­ções de tra­balho. Ra­pi­da­mente pas­saram a con­trolar a dis­tri­buição, em par­ti­cular ali­mentar, muitas vezes abu­sando da van­tagem de «po­sição do­mi­nante», mol­dando os há­bitos e ho­rá­rios de abas­te­ci­mento e con­sumo dos por­tu­gueses.

Em poucos anos, a es­tru­tura da dis­tri­buição ali­mentar por­tu­guesa foi al­te­rada pelas ca­deias de hi­per­mer­cados e su­per­mer­cados: Con­ti­nente (278 hiper e su­per­mer­cados); Pingo Doce (422 su­per­mer­cados); Jumbo e Pão de Açúcar (24 hi­per­mer­cados e 17 su­per­mer­cados ); In­ter­marché (228 su­per­mer­cados); Lidl (250 su­per­mer­cados); Dia/​Mi­ni­preço (600 su­per­mer­cados), El Corte In­glés (dois cen­tros co­mer­ciais e nove su­per­mer­cados); Le­clerc (22 hi­per­mer­cados); Aldi (60 su­per­mer­cados), Spar (100 su­per­mercos); Meu Super (190 su­per­mer­cados fran­chi­zados pelo Con­ti­nente); Co­viram (330 su­per­mer­cados fran­chi­zados) e pelas ca­deias gros­sistas Re­cheio (43 lojas) e Makro (10 lojas).

A imensa rede de mer­ce­a­rias tra­di­ci­o­nais, muitos «auto-ser­viços» e ta­lhos que du­rante muitas dé­cadas foram ponto de es­co­a­mento das pro­du­ções lo­cais e abas­te­ceram os por­tu­gueses de pro­dutos ali­men­tares, bem como pe­quenas ca­deias de su­per­mer­cados e co­o­pe­ra­tivas re­gi­o­nais (AC Santos, Ulmar, Su­per­compra, Plu­ri­coop, Ali­super, etc.) não aguen­taram a con­cor­rência, fe­charam ou foram ab­sor­vidas.

Re­sul­tados da mu­dança es­tru­tural
para a pro­dução na­ci­onal

O ca­pi­ta­lismo, ao apo­derar-se do sector da dis­tri­buição, impôs ho­rá­rios de aber­tura dos es­ta­be­le­ci­mentos com­ple­ta­mente li­be­ra­li­zados, novos mé­todos e formas de com­prar, pagar, vender, re­ceber e prestar ser­viços, com vista a con­trolar e gerar mais va­lias.

Fez «mexer» e ra­ci­o­na­lizar a pro­dução, de que são exem­plos po­si­tivos: as co­o­pe­ra­tivas do leite e de­ri­vados; pro­dução de carnes, aves e ovos; al­guns sec­tores de frutos e hor­tí­colas; e até «tocou» a pesca, com as suas uni­dades de aqui­sição e pro­ces­sa­mento de pes­cado fresco. Forçou o em­ba­la­mento ade­quado dos pro­dutos, maior hi­giene e cui­dado na con­ser­vação, ma­nu­se­a­mento e apre­sen­tação e, para evitar estar por más ra­zões «nas bocas do mundo», al­gumas ca­deias até ade­riram à cha­mada «res­pon­sa­bi­li­dade so­cial» e adop­taram re­gras de maior res­peito pela «sus­ten­ta­bi­li­dade am­bi­ental», in­cluindo o tra­ta­mento, trans­porte e abate de ani­mais e aves. Forçou ainda a cri­ação de há­bitos de cum­pri­mento de prazos de en­trega e de res­peito pelos con­tratos co­mer­ciais por parte dos for­ne­ce­dores.

Os con­tratos com for­ne­ce­dores – com con­di­ções le­o­ninas de for­ne­ci­mento, prazos e con­di­ções de pa­ga­mento «elás­ticas» –, que le­varam muitos ao de­ses­pero e in­sol­vência, foram a ino­vação mais ba­da­lada, tal como a gestão dos fundos de te­sou­raria e as vendas a cré­dito, através dos car­tões pla­fo­nados. O abuso de «po­sição do­mi­nante» foi e é usada para «partir preços», fa­zendo pro­mo­ções de 30, 40 e 50 por cento de des­conto em pro­dutos ali­men­tares, com os con­su­mi­dores a acorrer a com­prar o que pre­cisam e não pre­cisam, sem pre­o­cu­pa­ções com a qua­li­dade e origem dos pro­dutos, que ad­quirem sem olhar à quan­ti­dade ou peso das em­ba­la­gens. Con­firma-se assim que con­tinua a ser o preço o prin­cipal factor que dita a opção da mai­oria.

Estas pro­mo­ções são sempre su­por­tadas, duma ou doutra forma, pelos for­ne­ce­dores, se são na­ci­o­nais. Caso sejam in­ter­na­ci­o­nais, há ou­tras formas de fi­nan­ci­a­mento: através da sub­sí­di­ação de preços pelos es­tados ex­por­ta­dores e ex­ce­den­tá­rios ou por via do in­cum­pri­mento de re­gras de pro­dução e so­ciais bá­sicas. Na mesma linha cons­tata-se um cres­ci­mento das «marcas brancas», feitas em muitos casos de pro­dutos im­por­tados, ven­didos a preços mais baixos.

A cir­cuns­tância de al­guns pro­dutos de grande con­sumo cir­cu­larem sem a re­fe­rência do país de pro­dução, os­ten­tando como origem o de em­ba­la­mento, per­mite que se con­suma cer­veja es­tran­geira pen­sando que é na­ci­onal, azeite ori­gi­nário da Tu­nísia, Mar­rocos, Es­panha ou Tur­quia com ró­tulo de por­tu­guês, arroz asiá­tico jul­gando-se ser do Sado ou vinho dos novos pro­du­tores ame­ri­canos ou aus­tra­li­anos como sendo na­ci­onal. Está também na origem do facto de al­guns dos me­lhores azeites por­tu­gueses – dos me­lhores do mundo, por­tanto – saírem a granel para Itália para de­pois serem en­gar­ra­fados e ven­didos e va­lo­ri­zados como sendo os me­lhores... de Itália.

A pro­dução na­ci­onal perdeu

É pre­ciso olhar com «olhos de ver» para as ca­rac­te­rís­ticas da pro­dução na­ci­onal – muita dela as­sente em uni­dades e tra­balho fa­mi­liar de pe­quena e média di­mensão, sem «massa crí­tica» para sa­tis­fazer as exi­gên­cias da grande dis­tri­buição em quan­ti­dade, preço, prazos de en­trega e con­di­ções de pa­ga­mento e sem tra­dição nem con­di­ções de pro­fis­si­o­na­li­zação. Por isso, muitos pro­du­tores ficam à es­pera que lhe apa­reça al­guém a com­prar a pro­dução.

A ge­ne­ra­li­dade dos pro­du­tores na­ci­o­nais faz tudo: produz, gere e vende. Por isso, quando se pro­por­ciona, também en­frentam os com­pra­dores pro­fis­si­o­nais das grandes ca­deias, al­ta­mente pre­pa­rados e in­for­mados, saindo do con­fronto muitas vezes a perder porque não têm força ne­go­cial, in­for­mação e pre­pa­ração e às vezes nem sabem o custo do pro­duto que vendem. Daí re­sulta mais uma enorme des­van­tagem.

O au­mento da con­cor­rência entre grupos obriga a elevar a fas­quia das exi­gên­cias, cada um pro­cu­rando ga­nhar van­ta­gens. A con­cen­tração das com­pras, em­ba­la­mento e dis­tri­buição a partir das pla­ta­formas lo­gís­ticas dos grandes players da dis­tri­buição per­mite-lhe gerir me­lhor o abas­te­ci­mento e o for­ne­ci­mento às lojas, se­lec­ci­onar mais os for­ne­ce­dores: só ficam em linha os mai­ores, que ga­rantam pro­dutos stan­da­ri­zados, quan­ti­dade, en­tregas pro­gra­madas e baixo preço; os ou­tros são con­de­nados à ex­clusão.

Com a ex­clusão da grande dis­tri­buição, o de­sa­pa­re­ci­mento da rede tra­di­ci­onal de dis­tri­buição e o es­va­zi­a­mento dos mer­cados mu­ni­ci­pais, as pe­quenas e mé­dias pro­du­ções deixam de ter acesso às pra­te­leiras para expor e vender as suas pro­du­ções, es­sen­ciais para abas­tecer os con­su­mi­dores em di­ver­si­dade e qua­li­dade.

Nestas con­di­ções, a pro­dução na­ci­onal perdeu e, com ela, a so­be­rania ali­mentar de Por­tugal. Não chega o cres­ci­mento de al­guns pro­dutos, re­sul­tante de grandes in­ves­ti­mentos em pro­du­ções in­ten­sivas agro-agrí­colas – como são exemplo o azeite e as hor­tí­colas – para com­pensar o que se está a perder, em es­pe­cial na di­ver­si­dade da pro­dução na­ci­onal.

A al­ter­na­tiva para os ex­cluídos é avançar de forma cri­a­tiva e co­o­pe­ra­tiva para novas formas de chegar com os pro­dutos aos con­su­mi­dores, como são exem­plos a venda di­recta, a va­lo­ri­zação de cir­cuitos al­ter­na­tivos e a di­na­mi­zação dos mer­cados mu­ni­ci­pais como ver­da­deiras pla­ta­formas de ex­po­sição e venda das pro­du­ções lo­cais de qua­li­dade.

A ba­lança ali­mentar cada vez mais de­se­qui­li­brada

As im­por­ta­ções de pro­dutos ali­men­tares – em pri­meiro lugar os ce­reais para con­sumo hu­mano e animal (só pro­du­zimos um quarto do que con­su­mimos); peixe fresco, con­ge­lado e sal­gado; carnes (só pro­du­zimos me­tade do que con­su­mimos); hor­tí­colas e frutos (em­bora se pro­duza, não chega às pra­te­leiras, que con­ti­nuam cheias com im­por­ta­ções) – de­se­qui­li­bram cada vez mais a ba­lança co­mer­cial e sus­tentam o dé­fice. Este, por sua vez, é usado pelo go­verno para jus­ti­ficar a con­ti­nu­ação do «apertar do cinto», em es­pe­cial no fi­nan­ci­a­mento de fun­ções so­ciais do Es­tado e na ac­tu­a­li­zação dos sa­lá­rios dos tra­ba­lha­dores da Ad­mi­nis­tração Pú­blica.

A le­gis­lação na­ci­onal

A cam­panha do Pingo Doce para acabar com o 1.º de Maio tal como o co­me­mo­ramos, em 2012, for­te­mente de­nun­ciada e com­ba­tida, acabou por pro­duzir um efeito co­la­teral, que foi a apro­vação do de­creto-lei 166/​2013. Este, con­ti­nu­ando a ter muitas portas abertas aos abusos de «po­sição do­mi­nante» e não sendo o que era ne­ces­sário, teve al­guns efeitos po­si­tivos: por exemplo, obrigou as grandes su­per­fí­cies a mexer no con­teúdo dos «mo­delos tipo» dos con­tratos le­o­ninos das grandes dis­tri­bui­doras com os for­ne­ce­dores, a re­duzir os prazos de pa­ga­mento e a serem pelo menos mais cui­da­dosas nos «cas­tigos» e vendas «abaixo do preço de custo».

Mas como se cons­tata, a lei não acabou com as vendas «abaixo do preço de custo» no 1.º de Maio e nou­tros dias, nem com as cha­madas prá­ticas co­mer­ciais «res­tri­tivas». Ao mesmo tempo, in­cen­tivou a «auto-re­gu­lação», que só serve o mais forte. Ainda assim, as multas apli­cadas pela mesma prá­tica no 1.º de Maio pas­saram de cerca 30 mil euros em 2012 para 500 mil em 2014.

É obvio que não são estas multas (ainda por cima re­du­zidas pelos tri­bu­nais) pagas por em­presas com lu­cros de cen­tenas de mi­lhões que as de­sin­cen­tivam a pros­se­guir na ac­ti­vi­dade cri­mi­nosa para a pro­dução na­ci­onal. É pre­ciso ir mais longe, fazer aplicar todos os me­ca­nismos da lei, in­clu­sive os pre­ven­tivos e mais pe­na­li­za­dores, re­gular me­lhor e pe­na­lizar di­rec­ta­mente os ges­tores de «topo» quando pro­movem prá­ticas como pa­ga­mentos com prazos «elás­ticos», em es­pe­cial de pe­re­cí­veis; can­ce­la­mento de en­co­mendas; al­te­ra­ções uni­la­te­rais ou re­tro­ac­tivas de con­tratos de for­ne­ci­mento; obri­gação aos pro­du­tores de fa­zerem ofertas de de­ter­mi­nadas quan­ti­dades de bens e ser­viços e re­ce­berem pro­dutos de­vol­vidos; exi­gên­cias de pa­ga­mento de es­paço para venda de pro­dutos ou de notas de cré­dito com­pen­sa­tó­rias de pro­dutos de­te­ri­o­rados ou sim­ples­mente não ven­didos; co­brança de pro­mo­ções; vendas abaixo do preço de custo; dis­cri­mi­nação de pro­du­tores, etc.

É ne­ces­sário de­fender e pro­mover uma po­lí­tica que va­lo­rize e di­ver­si­fique a pro­dução na­ci­onal e in­cen­tive – obrigue! – à compra, venda e con­sumo da pro­dução na­ci­onal, em muitos casos pro­dutos ex­ce­lentes e mais frescos, com­pen­sando o preço mesmo quando li­gei­ra­mente su­pe­rior.

Somos um País in­de­pen­dente se ti­vermos so­be­rania ali­mentar.




Mais artigos de: Temas