«Levantamos a voz a favor da Paz» – nos 70 anos do Congresso Mundial dos Intelectuais pela Paz

Gustavo Carneiro

PAZ Entre 25 e 28 de Agosto de 1948 re­a­lizou-se na ci­dade po­laca de Wro­claw (ainda par­ci­al­mente des­truída pela guerra) o Con­gresso Mun­dial dos In­te­lec­tuais pela Paz, pri­meira ex­pressão or­ga­ni­zada do mo­vi­mento que, dois anos mais tarde, de­sem­bo­caria na cons­ti­tuição do Con­selho Mun­dial da Paz.

Em Wro­claw co­meçou a edi­ficar-se o mo­vi­mento da paz uni­tário, de­mo­crá­tico, an­ti­fas­cista e anti-im­pe­ri­a­lista

Neste con­gresso par­ti­ci­param cen­tenas de de­le­gados oriundos de 45 países. Entre eles es­tavam al­guns dos mais des­ta­cados in­te­lec­tuais e ar­tistas desse tempo: Pablo Pi­casso, Jorge Amado, Paul Éluard, Henri Wallon, Ilya Eh­ren­burg, Mikhail Cho­lokhov, Ale­xander Fa­deev, Anna Seghers, Aimé Ce­saire, An­dersen Nexø, György Lu­kács, Eu­génie Cotton, Irène Curie, entre muitos ou­tros.

Pablo Ne­ruda pre­tendia estar pre­sente, mas foi im­pe­dido de rumar à Po­lónia pelo go­verno do Chile, o que mo­tivou a apre­sen­tação, pelo autor de Ger­nika, Pablo Pi­casso, de uma re­so­lução con­de­nando a au­sência for­çada do poeta, apro­vada por una­ni­mi­dade. Nou­tras re­so­lu­ções exigiu-se a li­ber­tação do «es­critor alemão an­ti­fas­cista Eisler, que passou anos a lutar contra Hi­tler e se en­contra há longos meses numa prisão ame­ri­cana» e ex­pressou-se a so­li­da­ri­e­dade aos re­pu­bli­canos es­pa­nhóis e aos in­te­lec­tuais, de­mo­cratas e par­ti­zans gregos, que en­fren­tavam a agressão im­pe­ri­a­lista com­bi­nada de norte-ame­ri­canos e bri­tâ­nicos.

Par­ti­cu­lar­mente nu­me­rosas eram as de­le­ga­ções so­vié­tica, po­laca, fran­cesa, ita­liana, in­glesa e norte-ame­ri­cana. A por­tu­guesa era com­posta pelo fí­sico Ma­nuel Va­la­dares (que seria eleito em 1950 para o Con­selho Mun­dial da Paz), o es­critor Alves Redol, que in­ter­veio no con­gresso (ver caixa), o com­po­sitor Fer­nando Lopes-Graça, o psi­qui­atra João dos Santos, a mé­dica Her­mínia Grijó e a bió­loga Maria da Costa. Nas suas me­mó­rias, João dos Santos re­corda a es­tadia em Wro­claw como o «mais ex­tra­or­di­nário con­vívio da minha vida», lem­brando o «en­vol­vi­mento de cerca de tre­zentas pes­soas das mais di­versas cul­turas, con­ti­nentes e países».

No Ma­ni­festo do con­gresso su­bli­nhava-se a «grande res­pon­sa­bi­li­dade» que re­caía sobre os in­te­lec­tuais do mundo, à luz «dos povos, da hu­ma­ni­dade e da his­tória»: «Le­van­tamos a voz em favor da paz, do livre de­sen­vol­vi­mento cul­tural dos povos, da sua in­de­pen­dência na­ci­onal e da sua es­treita co­o­pe­ração. Ape­lamos a todos os in­te­lec­tuais de todos os países a dis­cutir as pro­postas que se se­guem: or­ga­nizar em todos os países con­gressos na­ci­o­nais de ho­mens de cul­tura em de­fesa da paz; criar em todos os países co­mités na­ci­o­nais em de­fesa da paz; re­forçar as li­ga­ções in­ter­na­ci­o­nais entre os in­te­lec­tuais de todos os países para servir a paz». O Mani­festo foi apro­vado por lar­guís­sima mai­oria.

Por pro­posta de um de­le­gado ita­liano aprovou-se a cri­ação de um co­mité per­ma­nente, com sede em Paris, a quem entre ou­tras fun­ções foi atri­buída a de pro­mover um con­gresso mun­dial da paz no prazo mais curto pos­sível: menos de um ano de­pois, em Abril de 1949, re­a­li­zava-se o Pri­meiro Con­gresso Mun­dial dos Par­ti­dá­rios da Paz.

Início aus­pi­cioso

Nesta se­gunda ini­ci­a­tiva mun­dial – re­a­li­zada, em Abril de 1949, si­mul­ta­ne­a­mente em Paris e em Praga de­vido à re­cusa das au­to­ri­dades fran­cesas em per­mi­tirem a en­trada a par­ti­ci­pantes vindos da União So­vié­tica, das de­mo­cra­cias po­pu­lares da Eu­ropa Ori­ental e de al­guns países asiá­ticos – par­ti­ci­param já mais de 2000 de­le­gados de 72 países. Em Paris, as or­ga­ni­za­ções de ex-re­sis­tentes an­ti­fas­cistas cons­ti­tuíam o nú­cleo mais ac­tivo dos par­ti­ci­pantes fran­ceses.

O re­sis­tente an­ti­fas­cista e ci­en­tista francês Fré­déric Jo­liot-Curie, que anos antes fora ga­lar­doado jun­ta­mente com a mu­lher Iréne com o Prémio Nobel da Quí­mica, as­sume a di­recção dos tra­ba­lhos do Con­gresso e um lugar des­ta­cado no mo­vi­mento mun­dial que se cons­truía, pas­sando a co­or­denar o então eleito Co­mité Per­ma­nente dos Par­ti­dá­rios da Paz, se­diado em Paris. Pablo Pi­casso de­se­nhou o cartaz do Con­gresso, como de­se­nharia muitos ou­tros car­tazes e par­ti­ci­paria em muitos ou­tros en­con­tros in­ter­na­ci­o­nais do mo­vi­mento da Paz.

O início do mo­vi­mento mun­dial da paz di­fi­cil­mente po­deria ter sido mais pro­missor: em Março de 1950 o Co­mité Per­ma­nente dos Par­ti­dá­rios da Paz lança o Apelo de Es­to­colmo, pela proi­bição das armas nu­cle­ares, para o qual são re­co­lhidas cen­tenas de mi­lhões de as­si­na­turas em todo o mundo. Este Apelo con­tri­buiu enor­me­mente para que o mo­vi­mento da paz se am­pli­asse e alar­gasse ainda mais o seu âm­bito uni­tário, cons­ti­tuindo-se em torno da re­colha de as­si­na­turas em vá­rios países po­de­rosas or­ga­ni­za­ções de de­fesa da paz.

Em No­vembro desse ano, re­a­liza-se em Var­sóvia o se­gundo Con­gresso Mun­dial da Paz, com dois mil par­ti­ci­pantes de 80 países. Tal como no an­te­rior, estes já não eram apenas in­te­lec­tuais, mas também tra­ba­lha­dores, sin­di­ca­listas, mi­li­tares, dig­ni­tá­rios re­li­gi­osos, ac­tuais ou an­tigos go­ver­nantes e de­pu­tados. O Con­gresso aprovou a cri­ação de uma es­tru­tura per­ma­nente para co­or­denar a luta pela paz à es­cala in­ter­na­ci­onal: surgia, assim, o Con­selho Mun­dial da Paz.

O pri­meiro Con­selho Mun­dial da Paz, pre­si­dido por Fré­deric Jo­liot-Curie, in­te­grava co­mu­nistas, so­ci­a­listas e ou­tros de­mo­cratas, re­li­gi­osos de di­versas con­fis­sões e per­so­na­li­dades de áreas tão di­versas quanto a fí­sica Iréne Jo­liot-Curie, o pintor Pablo Pi­casso, os es­cri­tores Louis Aragon, Pablo Ne­ruda, Jorge Amado, Howard Fast, Ale­xander Fa­deev e Ilya Eh­rem­bourg, o cantor Paul Ro­beson, o fu­turo pre­si­dente da Guiné Equa­to­rial Sekou Touré, o ex-pre­si­dente do Mé­xico Lá­zaro Car­denas, a viúva do líder da re­vo­lução chi­nesa de 1911 Sun Yat-Sen, pro­e­mi­nente fi­gura no seu país, o Se­cre­tário-geral da CGT fran­cesa, entre muitos ou­tros, num total de 221 ele­mentos. Entre eles es­tava também o por­tu­guês Ma­nuel Va­la­dares.

Os es­ta­tutos do Con­selho Mun­dial da Paz, apro­vados nesse con­gresso, con­sa­graram o seu ca­rácter uni­tário, de­mo­crá­tico, an­ti­fas­cista e anti-im­pe­ri­a­lista, con­fir­mado quer na sua com­po­sição quer na sua acção. Ao longo dos anos, em múl­ti­plas cam­pa­nhas e ini­ci­a­tivas, o mo­vi­mento mun­dial da Paz mo­bi­lizou mi­lhões em todo o mundo em prol do de­sar­ma­mento, da re­so­lução pa­cí­fica dos con­flitos, da so­li­da­ri­e­dade aos povos que se ba­tiam pela sua li­ber­tação na­ci­onal e eman­ci­pação so­cial. E con­tinua a fazê-lo no sé­culo XXI.


Per­sistir em tempos di­fí­ceis

Na in­ter­venção que pro­feriu no Con­gresso Mun­dial dos In­te­lec­tuais pela Paz, o es­critor por­tu­guês Alves Redol co­meçou por re­co­nhecer que di­fi­cil­mente se po­deria falar numa «de­le­gação por­tu­guesa». Os in­te­lec­tuais por­tu­gueses pre­sentes em Wro­claw, dizia, não foram man­da­tados por um «ver­da­deiro Co­mité Na­ci­onal», que só seria criado em me­ados de 1950. Apesar disso, ga­rantiu o autor de Gai­béus, a sua pre­sença tra­duzia os «sen­ti­mentos de todos os es­cri­tores, ar­tistas e ho­mens de saber do nosso país re­al­mente amigos da paz, que se as­so­ciam de todo o co­ração à ideia de um Con­gresso Mun­dial de In­te­lec­tuais para a Paz».

Nesse pe­ríodo, no in­te­rior do País, vivia-se o re­cru­des­ci­mento da re­pressão à me­dida que a di­ta­dura fas­cista en­con­trava, após a der­rota do nazi-fas­cismo, no ali­nha­mento com o bloco anglo-ame­ri­cano uma só­lida ga­rantia de so­bre­vi­vência. A acção pela paz em Por­tugal de­sen­volveu-se, de forma con­sis­tente e es­tru­tu­rada, so­bre­tudo a partir do início de 1950 e da re­colha de as­si­na­turas para o Apelo de Es­to­colmo. Em em­presas, ser­viços, es­colas e as­so­ci­a­ções são cons­ti­tuídas co­mis­sões para a de­fesa da paz.

Em Agosto é for­mada a Co­missão Na­ci­onal para a De­fesa da Paz, da qual fa­ziam parte, entre muitos ou­tros, o mé­dico e Prémio Nobel Egas Moniz, o pro­fessor Ruy Luís Gomes, o es­critor Fer­reira de Castro, o com­po­sitor Fer­nando Lopes-Graça, a es­cri­tora Maria Lamas, o ma­te­má­tico José Mor­gado e a en­ge­nheira Vir­gínia de Moura.

En­fren­tando per­se­gui­ções e pri­sões, os par­ti­dá­rios da paz por­tu­gueses le­varam a cabo au­da­ci­osas cam­pa­nhas, ao mesmo tempo que so­freram im­por­tantes re­vezes. Mas sempre le­van­taram bem alto as ban­deiras da paz e da so­li­da­ri­e­dade: até Abril e daí aos nossos dias.

 


A res­posta certa
no tempo certo

O Con­gresso Mun­dial dos In­te­lec­tuais pela Paz teve lugar num mo­mento crí­tico da si­tu­ação in­ter­na­ci­onal do pós-Se­gunda Guerra Mun­dial. A a grande ali­ança que der­ro­tara o nazi-fas­cismo – sus­ten­tada na União So­vié­tica, Es­tados Unidos da Amé­rica e Grã-Bre­tanha – há muito que se es­bo­roara pe­rante a po­lí­tica agres­siva pro­mo­vida por aquela que era, à época, a po­tência he­ge­mó­nica do campo im­pe­ri­a­lista: os EUA. À data do con­gresso, a Guerra Fria era uma re­a­li­dade pre­sente no dia-a-dia dos povos.

Já em Março de 1946, Winston Chur­chill pro­fe­rira em Fulton (EUA), com o novo pre­si­dente norte-ame­ri­cano Harry Truman ao lado, o cé­lebre dis­curso da Cor­tina de Ferro, que marca sim­bo­li­ca­mente o início da Guerra Fria. No ano se­guinte, fora lan­çada a Dou­trina Truman e de ime­diato o Plano Marshall, duas peças da mesma es­tra­tégia de com­bate às forças re­vo­lu­ci­o­ná­rias e pro­gres­sistas e de ga­rantia do do­mínio po­lí­tico e eco­nó­mico dos EUA sobre a Eu­ropa Oci­dental, e não só.

A nível mi­litar, a do­mi­nação não era menor. A pre­sença de tropas norte-ame­ri­canas no con­ti­nente, e em redor dele, não só se torna per­ma­nente como se alarga. Em 1948, os EUA passam a uti­lizar bases mi­li­tares na Gro­ne­lândia, Is­lândia, Mar­rocos, Líbia, Tur­quia e Grã-Bre­tanha e ins­talam no con­ti­nente mais de uma cen­tena de bom­bar­deiros B-29, se­me­lhantes aos que anos antes lan­çaram as bombas ató­micas sobre Hi­ro­xima e Na­ga­sáqui. A NATO, nas­cida ofi­ci­al­mente em Abril de 1949, co­me­çava já então a ga­nhar forma.

A tensão em redor do es­ta­tuto e do fu­turo da Ale­manha atingia em me­ados de 1948 um ponto par­ti­cu­lar­mente quente. No Ex­tremo Ori­ente, a si­tu­ação não era menos ex­plo­siva, par­ti­cu­lar­mente na China e na Co­reia.

O mo­no­pólio da arma nu­clear (que os EUA con­ser­varam até 1949) era ins­tru­mento cen­tral do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano. Quatro anos após a der­rota do nazi-fas­cismo, as som­bras de uma nova guerra pai­ravam uma vez mais sobre a Hu­ma­ni­dade: de­pois de Hi­ro­xima e Na­ga­sáqui, qual­quer fu­turo con­flito as­su­miria di­men­sões ini­ma­gi­ná­veis.

O Con­gresso de Wro­claw cor­res­pondeu aos an­seios e as­pi­ra­ções de mi­lhões de pes­soas que em todo o mundo se ba­tiam para im­pedir uma nova guerra e, ao mesmo tempo, de­fender e alargar as im­pres­si­o­nantes con­quistas po­lí­ticas, eco­nó­micas, so­ciais, cul­tu­rais e na­ci­o­nais al­can­çadas a se­guir à Se­gunda Guerra Mun­dial. Se a sua re­a­li­zação re­pre­sentou já o ama­du­re­ci­mento e in­ter­li­gação das ba­ta­lhas tra­vadas em muitos países, ela serviu ao mesmo tempo para im­pul­si­onar a luta pela paz à es­cala in­ter­na­ci­onal, fa­vo­re­cendo a cri­ação de mo­vi­mentos na­ci­o­nais e a cres­cente co­or­de­nação na sua acção.

Hoje, numa si­tu­ação não menos pe­ri­gosa e ainda mais des­fa­vo­rável às forças do pro­gresso e da paz, o Con­gresso Mun­dial dos In­te­lec­tuais pela Paz e o pro­cesso que ele de­sen­ca­deou per­ma­necem como exemplo da pos­si­bi­li­dade real de unir sob uma mesma ban­deira e numa mesma luta quo­ti­diana – em de­fesa da paz, do de­sar­ma­mento, da so­li­da­ri­e­dade – am­plos sec­tores po­lí­ticos, ide­o­ló­gicos, re­li­gi­osos e pro­fis­si­o­nais e os povos de todo o mundo. E, ao fazê-lo, travar o passo às in­ten­ções mais agres­sivas do im­pe­ri­a­lismo.



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