Convocatória, de Miguel Tiago – uma poética sobre «os possíveis do futuro»

Domingos Lobo

Mi­guel Tiago põe o dedo na fe­rida mais pun­gente da so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista

Con­vo­ca­tória, tí­tulo que, no seu amplo sig­ni­fi­cado de en­contro/​de­bate, trans­missão de di­rec­trizes para a acção, nos con­voca para a ur­gência de pensar o pro­jecto co­mu­nista à luz deste nosso tempo, pe­rante os novos de­sa­fios so­ciais, cul­tu­rais e po­lí­ticos, as novas de­rivas de uma di­reita que quer sub­meter os povos às «leis dos ca­mi­nhos feitos», como es­creveu o nosso que­rido Ma­nuel da Fon­seca, fer­ra­menta que deve mo­bi­lizar-nos para os dias do fu­turo, que an­te­vemos com­plexo e agreste.

Daí a im­por­tância desta forma poé­tica de Mi­guel Tiago que é, e o autor não o es­conde ao longo de todo o livro, de afir­mação crí­tica do real e, o que o torna mais ac­tual e subs­tan­tivo, um livro que cla­ra­mente diz ao que vem, que as­sume sem medo a ide­o­logia que lhe está na gé­nese, que não usa a me­tá­fora para es­conder ou tor­near a de­núncia so­cial e po­lí­tica que es­tru­tura este dizer poé­tico que nos de­volve res­so­nân­cias, no de­sar­mante da sua fron­ta­li­dade, da des­com­ple­xada lin­guagem de Mai­a­kovski e da di­a­léc­tica in­qui­ri­dora de Brecht.

Con­vo­ca­tória, sa­bemo-lo, irá chocar os pu­ristas en­re­dados nos seus la­bi­rintos de re­trós velho, os que ainda por aí andam as­sa­nhados, tantos anos vol­vidos, a in­vec­tivar o neo-re­a­lismo e os seus au­tores, apenas porque ou­saram es­crever que a paz podre e beata do sa­la­za­rismo trazia em seu bojo a fome, a vi­o­lência, a in­jus­tiça, a mi­séria, a ex­plo­ração e a ig­no­rância. Au­tores, como agora Gusmão e Tiago, que ou­saram nos seus textos a de­núncia cri­a­tiva e firme, com o rigor da grande li­te­ra­tura, numa prá­tica poé­tica que ainda hoje marca o fe­cundo ima­gi­nário dessa he­rança, com po­emas que re­co­nhe­cemos pa­tri­mónio in­con­tor­nável da nossa cul­tura.

Li­ber­dade e cla­reza

Mi­guel Tiago per­tence às novas ge­ra­ções do pós-25 de Abril. Viveu, cresceu, es­tudou e es­creveu sempre em li­ber­dade. E essa con­dição, que em muitos dos novos au­tores en­tre­tanto re­ve­lados, mor­mente os da de­no­mi­nada Ge­ração de 90, os levou por ín­vios ca­mi­nhos, uns abri­gados num es­te­ti­cismo re­dutor e inócuo, ou­tros, os mais es­per­totes, vendo na li­te­ra­tura um filão para au­mentar pe­cúlio, teve em Tiago, como con­sequência ide­o­ló­gica, uma prá­tica poé­tica da cla­ri­dade ex­po­si­tiva, o en­vol­vi­mento dessa in­cursão cri­a­tiva nos pro­blemas mais can­dentes da mo­der­ni­dade e, so­bre­tudo, das ne­ces­si­dades so­ciais e ins­ti­ga­doras da re­a­li­dade deste nosso tempo.

Tiago sabe-o, e no-lo diz sem so­fismas, com a sim­pli­ci­dade e cla­ri­vi­dência teó­rica que o mar­xismo per­mite, sem re­cursos a eu­fe­mismos, a sub­ter­fú­gios se­mân­ticos, dado que «não nos basta saber/ que nos roubam o pão,/ que contra nós/ cons­piram es­con­didos/ os pa­ra­sitas e os as­sas­sinos./ não nos basta saber/ que morrem de fome os nossos ir­mãos,/ e que os ho­mens li­vres morrem na prisão./ não nos basta saber que os vam­piros/ morrem quando páram de chupar-nos o sangue./ é pre­ciso querer e fazer com que eles parem.» Quem assim es­creve está a pôr o dedo na fe­rida mais pun­gente da so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista que nos querem impor como mo­delo de ab­so­lutos e, na ex­pressão sa­fada da se­nhora That­cher, sem al­ter­na­tiva.

So­corro-me de um texto de Ma­nuel Gusmão: «Nós pre­ci­samos de fu­turo como do ar que res­pi­ramos. Aliás, a tese sobre «o fim da his­tória» co­meça por ser uma his­tória mal con­tada e, mais que um di­ag­nós­tico, re­pre­senta uma ten­ta­tiva de eter­ni­zação de um pre­sente re­du­zido e um blo­que­a­mento do fu­turo por es­go­ta­mento dos pos­sí­veis.»

O que a po­esia de Mi­guel Tiago nos traz, em cla­rís­simo dis­curso, é essa ideia so­be­rana e justa de que há um fu­turo que nestes textos se res­pira e que os pos­sí­veis avanços da hu­ma­ni­dade se não es­gotam nas en­ce­na­ções pí­fias e ul­tra­re­ac­ci­o­ná­rias do «fim da his­tória».

É para os pos­sí­veis do fu­turo que a po­esia de Mi­guel Tiago aponta e nos con­voca.




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