Joseia Matos Mira: 20 anos de função literária

Domingos Lobo

Jo­seia Matos Mira pu­blicou nove ro­mances, cinco li­vros de contos e dois de po­esia

Jo­seia Matos Mira nasceu em Ba­leizão, Beja. Fez es­tudos de mes­trado e dou­to­ra­mento na Uni­ver­si­dade Mc­Gill, em Mon­treal, Québec. Nessa mesma Uni­ver­si­dade lec­ci­onou Li­te­ra­tura Fran­cesa. Re­gres­sada a Por­tugal foi pro­fes­sora do En­sino Se­cun­dário e lec­ci­onou, no ISLA, Tra­dução, Li­te­ra­tura e Cul­tura Por­tu­guesa.

Como es­cri­tora, nos 20 anos que leva de função li­te­rária, pu­blicou nove ro­mances, cinco li­vros de contos e dois de po­esia, o que con­fi­gura um cons­tante e pro­fícuo labor sobre os signos e os ima­gi­ná­rios que a lin­guagem fic­ci­o­nada per­mite.

Jo­seia cons­trói os seus uni­versos te­má­ticos tendo a me­mória do Alen­tejo da sua in­fância/​ado­les­cência como leit­motiv desse ofício das pa­la­vras, ao qual acres­centa, com ar­guto en­genho, as ex­pe­ri­ên­cias que ao longo do seu per­curso pe­da­gó­gico foi re­co­lhendo. Há na es­crita de Jo­seia Matos Mira um co­nhe­ci­mento sin­gular das per­so­na­gens que per­correm os seus ro­mances e os seus contos numa es­crita plena de in­qui­e­ta­ções exis­ten­ciais, mas igual­mente de­nun­ci­a­dora das in­jus­tiças que abalam este nosso mundo, numa tor­rente nar­ra­tiva que de­sagua no delta largo da dig­ni­dade, da co­ragem e do sen­tido cul­tural e cí­vico que toda a in­ter­venção cri­a­tiva, que tem a re­a­li­dade e suas cir­cuns­tân­cias como ma­téria de es­pe­cu­lação in­te­lec­tual, deve ser. Es­cri­tora de Ba­leizão, ci­dadã do mundo, Jo­seia é her­deira desse uni­verso onde o hu­mano é fibra e subs­tância.

Esses va­lores so­ciais e hu­manos estão pre­sentes nos seus mais re­centes textos: E Ani­ceto vem à Luz, um ro­mance onde o fan­tás­tico se en­tre­cruza com o real, e no pe­queno livro Amor ao En­tar­decer, que junta três mag­ní­ficos contos, com a qual a au­tora quis as­si­nalar 20 anos de pro­dução fic­ci­onal.

A es­crita de Jo­seia es­tru­tura-se no fac­tual his­tó­rico e re­vela um pro­fundo co­nhe­ci­mento dos nossos au­tores clás­sicos, so­bre­tudo os que vêm do re­a­lismo, como Eça, ou do neo-re­a­lismo como Faure da Rosa, Ma­nuel da Fon­seca, Ur­bano, ou do re­a­lismo poé­tico francês. Es­crita con­tida, se­rena, re­cu­sando o hi­per­bó­lico e o sonso ron­ronar bar­roco, a fazer-se de­sem­po­ei­rado e cos­mo­po­lita, que in­vade grande parte da nossa ac­tual prosa. A au­tora não busca o olhar com­pla­cente de quem a lê, daí o ines­pe­rado, a pro­vo­cação per­ma­nente, o jogo de quem tem os trunfos e os re­vela e oculta num jogo em per­ma­nente mu­tação, como acon­tece no conto Con­fissão, dri­blando a sin­taxe e usando as ana­lepses, as si­né­do­ques com exacta so­bri­e­dade.

Amor ao En­tar­decer, que dá tí­tulo ao re­cente livro de Jo­seia, é to­cante pelo re­a­lismo que o per­corre, pela aná­lise que faz do nosso tempo e da usura que o in­vade, das crenças que, un­gidas dogma e força de razão, im­põem a sua ver­dade ao comum dos mor­tais, im­pe­dindo que o Amor, mesmo que seja o der­ra­deiro e ân­cora para o fim digno da vida, se es­ta­be­leça entre dois seres, mas também o Alen­tejo do la­ti­fúndio, dos «se­nhores da terra», da ab­jecção que o conto O La­vrador de­fine com sin­gular pre­cisão.

Num re­gisto mais solto, Jo­seia Matos Mira dá-nos a an­gústia, de sen­tido sar­triano, no ro­mance E Ani­ceto Vem à Luz, do autor pe­rante os seus blo­queios cri­a­tivos, os fan­tasmas e a in­ter­tex­tu­a­li­dade que pontua o dis­curso, com re­fe­rên­cias a Eça, a Si­mone de Be­au­voir, Ca­mões, Ho­mero, Her­cu­lano, H.G. Wells. Uma es­crita dentro da es­crita, o seu abs­tracto e in­ques­ti­o­nável per­curso, as me­mó­rias dos tempos vi­vidos no Ca­nadá, a li­te­ra­tura fran­cesa, os de­bates ín­timos do cri­ador face à cri­a­tura que teima em não se re­velar, eis o fulcro pelo qual se es­praia a pulsão nar­ra­tiva da au­tora de O Fron­teiro do Sul ou desse in­ques­ti­o­nável ro­mance da saga longa e he­róica do Alen­tejo so­frido que é Joana Cam­peoa.

«– Ani­ceto Luz, Ani­ceto Luz. Quem és tu? – Vou si­la­bando as pa­la­vras, mar­te­lando-as uma a uma. O de­ses­pero é grande. Blo­queio de es­critor?! Será?» Mas nada que a au­tora não re­solva no de­sen­vol­vi­mento da nar­ra­tiva, e não con­siga «romper com o blo­queio como a ca­beça do nas­ci­turo rompe a pla­centa antes de cair no mundo».

Ter­mino re­cor­rendo a um pa­rá­grafo de uma an­te­rior aná­lise sobre a obra da au­tora: Es­cre­vemos, como nos diz Edgar Morin, para pôr em co­mu­ni­cação uma ex­pe­ri­ência exis­ten­cial e um saber cons­ti­tuído. Eis o que Jo­seia Matos Mira, de Ba­leizão, do mundo, nos deixa dito nestes seus dois mais re­centes tí­tulos: um saber cons­ti­tuído sobre a in­qui­rição ma­goada deste nosso tempo.

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E Ani­ceto Vem à Luz, de Jo­seia Matos Mira, Edi­ções Co­libri/​2017

Amor ao En­tar­decer, de Jo­seia Matos Mira, edição de Autor/​2018




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