Os obedientes

Correia da Fonseca

Ainda que cor­rendo o risco, que não é pe­queno, de no curto pe­ríodo de dois ou três dias fi­carem de­sac­tu­a­li­zadas as pa­la­vras que se mo­bi­lizem acerca da Ve­ne­zuela, ar­riscar é pre­ciso e aliás in­dis­pen­sável: não apenas a questão ve­ne­zu­e­lana é uma peça im­por­tante do grande “puzzle” da po­lí­tica mun­dial como ocorre que a pro­pó­sito dela a di­reita trans­na­ci­onal de­sen­ca­deou uma ofen­siva pro­pa­gan­dís­tica de enormes di­men­sões com grande pre­sença na TV por­tu­guesa. Para isso, tem tudo quanto é ne­ces­sário: um apa­relho gi­gan­tesco, dó­lares bas­tantes para com­prar quem for pre­ciso, va­ri­adas formas de pressão, ser­vi­dores vo­lun­tá­rios que se aco­to­velam na ânsia de serem re­cru­tados. Foi neste quadro que veio ins­crever-se a «vi­tória di­plo­má­tica» de um su­jeito de ape­lido Guaidó, di­plo­mado em en­ge­nharia pela uni­ver­si­dade Ge­orge Washington (não é piada, é mesmo um facto): Juan Guaidó, que havia sido eleito para um outro cargo, terá achado que o que lhe fi­cava bem era mesmo ocupar o lugar do pre­si­dente Ni­colás Ma­duro e au­to­pro­clamou-se pre­si­dente da Ve­ne­zuela. Logo os Es­tados Unidos anun­ci­aram que aquele é que era o pre­si­dente au­tên­tico, o ver­da­deiro e ne­ces­sário, e o re­co­nhe­ci­mento do su­jeito veio per­cor­rendo o mundo com a ve­lo­ci­dade de uma epi­demia in­ten­sa­mente vi­ru­lenta. É claro que o go­verno por­tu­guês de­cidiu pres­su­ro­sa­mente que o nosso país seria um dos con­ta­gi­ados.

Em bicos de pés

Para que Por­tugal não fique ex­ces­si­va­mente mal no re­trato, convém dizer que toda a «Eu­ropa», a ge­o­grá­fica e a que é de­sig­nável pelas ini­ciais EU, se apressou a re­co­nhecer o en­ge­nheiro Guaidó como ti­tular de um lugar que não es­tava vago. Com três ex­cep­ções: as da Rússia (que também é Eu­ropa, em­bora haja uma ten­dência para es­quecer esse facto), da Grécia e da Itália. Nada ga­rante, porém, que a ra­pidez com que o nosso país pro­cedeu à talvez pre­ma­tura subs­ti­tuição de Ma­duro por Guaidó seja um factor fa­ci­li­tador do óp­timo con­vívio da co­mu­ni­dade por­tu­guesa na Ve­ne­zuela com o povo ve­ne­zu­e­lano. Ao con­trário do que por cá muito se re­pete, não é certo que as enormes di­fi­cul­dades do tempo mais re­cente (e que não caíram do céu aos tram­bo­lhões, tendo antes sido dis­pa­radas pela guerra eco­nó­mica e fi­nan­ceira que os States de­sen­ca­de­aram) te­nham le­vado a ge­ne­ra­li­dade dos ve­ne­zu­e­lanos a es­que­cerem os pro­gressos que o cha­vismo lhes pro­por­ci­onou e por cá sempre foram si­len­ci­ados. Por isso talvez a apres­sada obe­di­ência às or­dens de Washington quanto ao re­co­nhe­ci­mento de Guaidó e da der­rota de Ma­duro tenha sido apenas um pri­meiro passo, e mau, e inábil, num per­curso que pode ser longo. Até lá, é claro que os States terão fi­cado sa­tis­feitos por tão pronta obe­di­ência. Mas acon­tece que a vida, e também a vida po­lí­tica, tem mais voltas do que su­põem os que, su­pos­ta­mente cautos, apostam na obe­di­ência em bicos de pés para que se torne bem vi­sível.




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