Nina Simone, uma «voz com alma, talentosa e negra»

Nuno Gomes dos Santos

«Eu só quero igual­dade para a minha irmã, o meu irmão, para o meu povo e para mim»

Há vozes e pos­turas que, juntas, nos dão a ale­gria de que pre­ci­samos para con­ti­nuar a luta do lado me­lhor da vida. Com tro­pe­ções, é certo (quem não os tiver dado que atire a pri­meira pedra...), mas com uma ina­ba­lável força e uma in­que­bran­tável von­tade, Nina Si­mone (1933-2003), que agora re­vejo e volto a ouvir, numa pe­re­gri­nação cí­clica à mú­sica e às pa­la­vras que in­ter­pretou numa voz de con­tralto cheia e po­de­rosa, é um exemplo disso.

Filha de uma em­pre­gada do­més­tica que era mi­nistra me­to­dista e de um pai mar­ce­neiro, co­meçou por en­frentar os pais mu­dando de nome (nasceu Eu­nice Kath­leen Waymon e es­co­lheu ser Nina, de «niña» e Si­mone, já que Si­mone Sig­noret era a sua acrtiz pre­fe­rida) para cantar blues às es­con­didas. De­pois teve que en­frentar muitas coisas, entre elas a proi­bição de in­gressar no Ins­ti­tuto de Mú­sica Curtis, na Fi­la­délfia, apesar de ter cur­sado piano clás­sico na Juil­liard School de Nova York, ou, aos 12 anos, a ordem para que os seus pais, que es­tavam na pri­meira fila do seu con­certo de es­treia na igreja local, pas­sassem para as úl­timas filas para dar lugar a brancos. Nina não co­meçou a ac­tu­ação en­quanto não reviu os seus pro­ge­ni­tores nos seus lu­gares ini­ciais...

Cantou em bares, co­meçou a gravar e, desde logo, se mos­trou uma can­tora em­pe­nhada («Gos­tava de saber como seria sen­tirmo-nos li­vres», Billy Taylor) e de um bom gosto di­ver­si­fi­cado, can­tando o já ci­tado Billy Taylor, Ge­orge Har­rison (o «be­atle» que es­creveu, por exemplo, Here Comes The Sun e My Sweet Lord, que Nina in­ter­pretou) e Lor­raine Hans­berry, que compôs To Be Young, Gifted and Black («ser jovem, ta­len­tosa e negra»). Foi amiga de Mi­riam Ma­keba, Aretha Fran­klin e Donny Hathaway (cantor de topo – soul, blues, gospel – e de vida breve mas de car­reira muito aplau­dida).

Nina foi pro­ta­go­nista de vá­rios epi­só­dios de im­pa­ci­ência e brus­quidão, coisas me­nores se aten­tarmos ao que fez pelos di­reitos cí­vicos dos ne­gros. Cantou Mis­sis­sipi Goddam, que se tornou um hino ac­ti­vista dos ne­gros norte-ame­ri­canos, de­nun­ci­ando o as­sas­si­nato de quatro cri­anças ne­gras numa igreja de Bir­mingham, Ala­bama, e afir­mando, na letra: «Eu já não per­tenço aqui1 (…). Eu só quero igual­dade para a minha irmã, o meu irmão, para o meu povo e para mim.» Ac­tuou em con­certos contra a guerra do Vi­et­name. Não foi por acaso que cantou no fu­neral de Martin Luther King.

São muitas as ra­zões para ou­virmos, ou re-ou­virmos, na sua voz com alma, can­ções como Don’t Let Me Be Mi­sun­ders­tood, To Be Young, Gifted and Black, I Put a Spell On You, Here Comes The Sun, Mis­sis­sipi Goddam, Little Girl Blue ou I Wish I Know It Would Feel To Be Free. Para além da ac­tu­a­li­dade te­má­tica das suas can­ções, Nina Si­mone é uma prenda para os nossos ou­vidos!

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1Nina Si­mone sentiu-se com­pe­lida a sair dos EUA de­pois de ter can­tado To Be Young, Gifted an Black. Re­gressou aos Es­tados Unidos e foi, de­pois de al­gumas com­pli­ca­ções, acon­se­lhada por Mi­riam Ma­keba a ir para a Li­béria. Viveu ainda na Suécia e na Ho­landa, antes de se fixar em França, onde fa­leceu, aos 70 anos.




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