A visita de Jean Valjean

Correia da Fonseca

Quando há mais de sé­culo e meio pu­blicou «Os Mi­se­rá­veis», Victor Hugo não es­condeu ao que vinha: na pá­gina ini­cial do seu livro es­creveu que «en­quanto houver sobre a terra ig­no­rância e mi­séria, li­vros como este po­derão não ser inú­teis». De então para cá, ge­ra­ções su­ces­sivas mer­gu­lharam na lei­tura do ro­mance, emo­ci­o­nando-se com o per­curso de Jean Val­jean, que­rendo mal ao ins­pector Ja­vert, en­ter­ne­cendo-se com o ro­mance de Mário e Co­sette, vi­brando por­ven­tura com as pá­ginas evo­ca­doras de bar­ri­cadas er­guidas nas ruas de Paris. O Ci­nema, a Te­le­visão, até o Te­atro, fi­zeram de «Os Mi­se­rá­veis» ma­te­rial para ver­sões suas. A RTP ini­ciou há dias a trans­missão de uma adap­tação do ro­mance feita pela BBC, e é de crer (so­bre­tudo de de­sejar) que a tra­di­ci­onal qua­li­dade bri­tâ­nica em tra­ba­lhos destes não seja pre­ju­di­cada por algum even­tual pre­con­ceito ide­o­ló­gico. Porque, como bem se sabe, a BBC é de uma cepa con­ser­va­dora e «Os Mi­se­rá­veis» mantem, tantos anos de­pois, al­guma coisa de sub­ver­sivo.

Uma es­pécie de es­tan­darte

Já não pode tratar-se, é claro, da de­núncia do então sel­vá­tico re­gime pri­si­onal francês ou da exis­tência na so­ci­e­dade fran­cesa de «mi­se­rá­veis» equi­pa­rá­veis aos que terão ins­pi­rado Hugo. Mas, para lá da odis­seia de Jean Val­jean que po­demos agora re­vi­sitar, não é ne­ces­sária muita per­sis­tência para en­con­trarmos, mesmo sem sairmos desta nossa Eu­ropa apesar de tudo pri­vi­le­giada, si­tu­a­ções de mi­séria so­cial (e também de mi­séria de outra ordem, mas pas­semos sobre esse as­pecto) que há muito de­veria ter sido er­ra­di­cada. De qual­quer modo, não é pre­ciso trans­portar Jean Val­jean para este nosso sé­culo XXI para en­con­trarmos si­nais de ac­tu­a­li­dade na nar­ra­tiva de Victor Hugo: logo no pri­meiro epi­sódio da adap­tação te­le­vi­siva, o caso do bispo que com es­pí­rito cristão «cobre» o roubo dos cas­ti­çais de prata que fi­zeram Val­jean cair em ten­tação pode fazer-nos lem­brar a lu­fada de cris­ti­a­nismo re­no­vado que es­tará a so­prar de Roma. E este re­la­tivo por­menor no todo nar­ra­tivo pode (e de­verá) lem­brar-nos uma busca de au­ten­ti­ci­dade cristã que, como se vê, con­ta­minou também a obra e de­certo o pen­sa­mento de Victor Hugo, o que tem um sig­ni­fi­cado cuja di­mensão se mede pelo pres­tígio que o ro­man­cista teve du­rante dé­cadas junto das massas lei­toras e que de algum modo ainda se mantem. Em ver­dade, o nome de Victor Hugo foi uma es­pécie de es­tan­darte do pen­sa­mento «de es­querda» em tempos de ofen­siva maur­ra­siana dentro e fora de França (Sa­lazar era um ve­e­mente ad­mi­rador de Maurras). E assim se ve­ri­fica uma vez mais que isto anda tudo li­gado.




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