O Cinema ao Vivo

Marta Pinho Alves

A digitalização não é um caminho simples de democratização e inclusão

A digitalização do cinema tem originado novas modalidades de criação cinemática. Uma destas é a que tem vindo a ser designada por Cinema ao Vivo. Por ser ainda muito recente, o Cinema ao Vivo não encontrou ainda uma definição clara e uma delimitação conceptual, servindo muitas vezes este termo para aludir a qualquer prática de projeção de imagens em movimento que seja combinada com uma atuação ao vivo.

Poder-se-ia por isso propor que as práticas iniciais de exibição cinemática, no dealbar do cinema – que implicavam um músico, habitualmente um pianista, ou uma orquestra, a executar um acompanhamento musical durante a apresentação do filme, ou um actor ou conjunto de actores a representar atrás (ou em frente) do ecrã gigante –, e que agora, são tão amplamente recuperadas, constituiriam já uma forma de Cinema ao Vivo. Antes de continuar, uma digressão: esta nostalgia, que se expressa em múltiplos festivais, cine-concertos, filmes musicados, happenings cinemáticos – e que elege preferencialmente, não estranhamente, filmes do período do mudo – não deixa de proporcionar entusiasmantes eventos, mas é uma nostalgia sem referente, uma alusão a um passado estimulante de que não há memória.

Pretende-se aqui dizer que o Cinema ao Vivo de que se fala seria uma coisa outra, não sem contributos e influências de momentos antecedentes, mas um espetáculo de outra ordem. O Cinema ao Vivo consiste numa actuação que pressupõe a apresentação de imagens em movimento, figurativas ou abstratas, gravadas e ao vivo, que surgem em múltiplos ecrãs, e que se combinam com outros registos visuais, como motion graphics e design de luz, e registos sonoros, pré-gravados ou executados durante a actuação. Estes vários elementos combinam-se perante a audiência pela ação dos artistas que operam os equipamentos perante o público, alternando entre o planeamento e a improvisação.

O público pode observar o gesto do artista que permanece desocultado durante o espetáculo. Audiência e artista interagem e esse diálogo contribui para a elaboração da obra. A peça que daí emerge é única e irrepetível, pode construir um texto numa lógica narrativa, com um fio condutor claro, pode ser unicamente sensorial.

Meios e capacidades

Neste quadro, têm vindo a ser desenvolvidos trabalhos de grande interesse. Evidencia-se o labor de um colectivo de artistas londrino, The Light Surgeons (TLS), que tem já um vasto reportório neste domínio. Fundado em 1995, o TLS começou a fazer Cinema ao Vivo em 1998. Desde aí já conceberam próximo de uma dezena de espetáculos e têm vindo a recriar e a reinterpretar desde então. A última dessas peças, Atemporal (ou Atemporal 2.0, numa interpretação posterior), é uma evocação do tempo e do espaço e da percepção humana sobre estes, temas intrínsecos ao próprio cinema, que se faz a partir de imagens concebidas para esta peça e de outras de trabalhos anteriores do grupo e das palavras do escritor, pintor e crítico de arte John Berger.

Nada do que aqui se descreve, as ideias artísticas, os conceitos, advém da digitalização. Nada disto faz do Cinema ao Vivo marcadamente digital. Mas o digital permite estas construções, permite o acesso aos meios, às ferramentas para a sua construção. O que a digitalização faz é tornar acessível aos artistas mecanismos simplificados, menos dispendiosos, ágeis, que se colocam ao serviço da sua escrita fílmica, da sua capacidade criativa e permitir ao público aceder-lhe com relativa facilidade (relativa porque há aqui outros fatores de acesso e literacia cultural que é necessário considerar).

A digitalização não é um caminho simples de democratização e inclusão, e como já apontámos noutros artigos, essa promessa é muitas vezes desvirtuada em função de outros interesses. Sobre isso voltaremos a falar.




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