MARIA VELHO DA COSTA (1938-2020)

Domingos Lobo

Maria Velho da Costa é uma das mais ino­va­doras vozes da ficção por­tu­guesa

Maria de Fá­tima Bivar Velho da Costa, nasceu em Lisboa a 26 de Junho de 1938 e fa­leceu nesta mesma ci­dade a 24 de Maio de 2020.

Em 1969 pu­blica Maina Mendes, um dos mais im­por­tantes e ino­va­dores ro­mances por­tu­gueses da 2.ª. me­tade do Sé­culo XX, em que a lin­guagem, co­lhida nos grandes clás­sicos da língua, se es­tru­tura se­du­tora e lím­pida: Como os lobos graves, como as trombas de neve que na serra dão em con­denar sem ruído, Maina Mendes, queda na cama, larga-lhe sem saber e só pelo es­can­ca­rado poço de es­cân­dalo que a tolhe, que des­cer­rado nela lhe tem to­lhida a fala, o pe­sado juízo de que é por­ta­dora.

Quando, em Maio de 1971, «as mãos de 3 ara­nhas as­tu­ci­osas» (Maria Isabel Bar­reno, Maria Te­resa Horta e Maria Velho da Costa) ini­ci­aram a es­crita de Novas Cartas Por­tu­guesas, tendo por ma­triz o texto Cartas Por­tu­guesas, atri­buído a Ma­riana Al­co­fo­rado, es­ta­riam por certo longe de ima­ginar o tor­ve­linho que a sua pu­bli­cação, em 1972, iria pro­vocar no país si­sudo, amargo e triste de Sa­lazar e Ca­e­tano.

A pro­pa­lada Pri­ma­vera Mar­ce­lista fi­cava, através da per­se­cu­tória in­ves­tida sobre um livro, posta a nu. O em­buste não re­sistiu a um livro que fa­lava da mu­lher, do seu corpo e da li­ber­dade de o usar; do de­sejo, do prazer e do amor com­par­ti­lhados. O livro, como era usual nesses tempos de bruma, foi re­ti­rado das li­vra­rias três dias após o seu lan­ça­mento. O pre­texto, se­gundo a om­ni­pre­sente Pide, na versão beata DGS, seria a de o con­teúdo ser «in­sa­na­vel­mente por­no­grá­fico e aten­ta­tório da moral pú­blica». Se­guiram-se pro­cessos-crime, au­di­ên­cias e toda a pa­ra­fer­nália de ac­ções de cerco e ame­aças que o poder fas­cista usava em casos que tais. A Re­vo­lução de Abril poria fim a mais este fu­nesto aten­tado à cul­tura e à livre ex­pressão de ideias.

Mais do que te­ma­tizar a li­bido, as com­plexas re­la­ções entre gé­neros nas so­ci­e­dades con­tem­po­râ­neas, as Novas Cartas Por­tu­guesas de­nun­ci­avam a si­tu­ação po­lí­tica do país, a guerra co­lo­nial, o poder ju­di­cial e suas ma­nhas, a con­dição da mu­lher numa so­ci­e­dade con­ser­va­dora, pa­dro­ni­zada pelo homem, a emi­gração (mais de dois mi­lhões de por­tu­gueses ha­viam par­tido), a falta de pers­pec­tivas fu­turas para os jo­vens.

No livro Cravo, numa prosa solar e li­ber­tária, de afir­mação re­vo­lu­ci­o­nária, a au­tora re­gres­sará a estes temas, in­cluindo nesse mag­ní­fico acervo da nossa me­mória co­lec­tiva, o Poema Re­vo­lução e Mu­lher, no qual de­fine com cla­reza o papel e a igual­dade da mu­lher em De­mo­cracia: Elas fi­zeram greves de braços caídos/​Elas bri­garam em casa/​para ir ao Sin­di­cato e à Junta/​Elas gri­taram à vi­zinha que era fas­cista/​Elas sou­beram dizer/​sa­lário igual e cre­ches e can­tinas/​Elas en­cheram as ruas de cravos.

Missa in Albis,1 é uma das obras cen­trais do uni­verso te­má­tico da au­tora de Lu­ci­a­lima. Nela co­a­bitam vá­rias abor­da­gens sobre o amor e seus ex­cessos, os mitos que se des­fazem e trans­fi­guram. Tendo como base de ex­pla­nação e su­porte fic­ci­onal, a ce­le­bração da Missa da Oi­tava Páscoa, que o tí­tulo la­tino da obra acentua, o ro­mance diz-nos da paixão, da an­gústia, da morte, num re­gisto ro­mân­tico que lembra Ca­milo.

As per­so­na­gens fe­mi­ninas de Velho da Costa, pos­suem um am­bíguo sen­tido de trans­cen­dência, que não pro­cura res­gate mas afir­mação face ao caos do mundo; busca uma iden­ti­dade su­per­la­tiva e re­sis­tente que en­frente dú­vidas e ca­mi­nhos per­cor­ridos às cegas. Há nessas per­so­na­gens uma mo­delar voz in­tem­poral, da es­sência, do que re­dime ou mata, algo de po­roso e sel­vagem como em Maina Mendes, ou o ab­so­luto de­ses­pero em Sara, de Missa in Albis. Com elas a au­tora alargou, como Aqui­lino, os li­mites da língua, os vi­bratos se­mân­ticos, as res­so­nân­cias ima­gís­ticas da nossa Li­te­ra­tura.

Do acervo li­te­rário de Velho da Costa, convém reter ainda tí­tulos como Casas Pardas, Da Rosa Fixa, Corpo Verde e Irene ou o Con­trato So­cial ( Prémio da APE em 2000).

Maria Velho da Costa re­cebeu o Prémio Ca­mões, em 2002.

A His­tória da Li­te­ra­tura fi­xará o nome de Maria Velho da Costa como uma das mais fe­cundas e ino­va­dores vozes da nossa ficção. A mais pro­fícua e justa ho­me­nagem será lê-la, não perder o má­gico fio de prumo dessa prosa única, in­con­for­mada, de­sa­fi­a­dora.




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