A vacina que vem do frio

Correia da Fonseca

Em dias dominados pela preocupação que o coronavírus suscita, a informação parecia merecer algum relevo: em Moscovo estará já em utilização uma vacina eficaz contra o vírus que até já teria sido aplicada na filha de Vladimir Putin. Perdoe-se o exagero, mas é de crer que se a vacina tivesse sido aplicada à filha do presidente Trump os «media» não se cansariam de badalar o facto e de sublinhar a eficácia científica dos States, que aliás é uma realidade que ninguém contesta. De qualquer modo, o facto é que não voltou a ser telefalada a tal vacina, o que surpreende em face da generalizada ansiedade com que se aguarda a sua descoberta. Aliás, não será absurdo prever, ou pelo menos admitir, que esta vacina «russa» ainda dará oportunidade a algum minúsculo episódio da «guerra fria» entre Washington e Moscovo que parece ter sido retomada, ainda que em tom moderado, por iniciativa da capital norte-americana. Um pouco lá mais para diante veremos como vai ser. Até lá, reconfortemo-nos um poucochinho com a notícia de que existe uma vacina cuja utilidade preciosa e até urgente deverá chegar mais tarde ou mais cedo aos quatro cantos do mundo.

Como se

De qualquer modo, parecerá surpreendente que a descoberta de uma vacina contra o coronavírus, ainda que por agora e tanto quanto se sabe aplicada apenas num país, tenha sido noticiada quase só de raspão. Surpreendente, repete-se; mas sê-lo-á menos se atentarmos em que a vacina será moscovita, origem que não suscita o entusiasmo dos «media» atlânticos e seus arredores. E não deixa de ser triste, quase penoso, que uma notícia capaz de suscitar esperança perante a ameaça que a pandemia representa tenha tido um tratamento tão discreto que muitos nem terão dado por ela. Essa discrição pode não ter decorrido da sua origem e do eventual acréscimo de prestígio que a anunciada vacina possa conferir à ciência russa, mas, sabendo-se o que todos muito bem sabemos, essa hipótese não pode ser evitada: é russa, logo merece o silêncio que possa ser plantado à sua volta. O facto é que, em larga medida, os «media» ocidentais parecem encarar a Rússia actual, em diversas situações e circunstâncias, como um mero pseudónimo da União Soviética. Como se considerassem que o projecto comunista que conduziu a Rússia ao primeiríssimo plano da cena internacional continuasse vivo na Rússia actual e, por consequência, ameaçando a hegemonia do capitalismo mundial com efectiva capital em Wall Street. Como se a Rússia continuasse a meter medo ao capitalismo. Como se ele, o capitalismo, tivesse a informulada consciência de que tem de morrer.




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