Arrecadações

Correia da Fonseca

Para nossa per­ma­nente in­qui­e­tação, a te­le­visão vem in­for­mando que o co­ro­na­vírus con­tinua a per­correr os quatro cantos do país, ainda que com di­fe­renças de in­ten­si­dade de re­gião para re­gião, e a causar danos no nosso quo­ti­diano. En­tre­tanto, a TV acres­centa, como aliás é seu dever, que os cha­mados lares de idosos são os lo­cais onde o vírus as­sas­sino mais fa­cil­mente colhe as suas ví­timas: estão lá os que têm as de­fesas na­tu­rais mais en­fra­que­cidas e talvez por vezes também os mais ex­postos às con­sequên­cias de um even­tual cor­rupio de vi­sitas nem sempre ro­de­adas de efi­cazes cau­telas. E esta quase he­ca­tombe que vem per­cor­rendo esses lu­gares con­fere uma nova ac­tu­a­li­dade à sua exis­tência, acres­centa-lhe um travo de dra­ma­ti­ci­dade e abre ca­minho para even­tuais in­ter­ro­ga­ções. Tanto quanto é pos­sível saber ainda que sem dados ri­go­rosos, pa­rece certo que há cada vez mais desses lares, ou me­lhor, «lares» entre aspas, e jus­ti­ficar-se-á talvez que nos per­gun­temos se esse acrés­cimo re­sulta do facto de haver cada vez mais ve­lhos ou de existir uma cres­cente ten­dência para que as fa­mí­lias se de­sem­ba­racem deles «ex­por­tando-os» para essa pe­cu­liar es­pécie de ar­ma­zéns.

Como

O nú­mero cres­cente de ci­da­dãos que as boas ma­neiras re­co­mendam re­ferir como idosos é uma boa no­tícia: os por­tu­gueses estão a viver mais anos, o que também sig­ni­fica que estão a re­sistir mais tempo ao apa­re­ci­mento de do­enças graves. Se a esse cres­ci­mento da lon­ge­vi­dade po­dermos acres­centar que os anos con­quis­tados são vi­vidos em me­lhores con­di­ções de saúde e bem-estar, a no­tícia é óp­tima. O au­mento da es­pe­rança de vida sus­cita, de qual­quer modo, uma in­ter­ro­gação que po­derá for­mular-se numa pa­lavra: «como». É óbvio que viver é bom, ape­te­cível, mas também que exige con­di­ções mí­nimas. Ima­gi­nemos, se pu­dermos, como é (sobre)viver en­cer­rado numa casa ata­fu­lhada de ve­lhos, dos seus di­versos acha­ques e la­mentos, e com a per­cepção de ter sido des­pe­jado ali para que a fase úl­tima da sua exis­tência não possa in­co­modar aqueles por quem, ao longo dos anos, terão en­fren­tado tra­ba­lhos e terão feito sa­cri­fí­cios. Que sai­bamos, que ve­jamos e ou­çamos, a TV não sabe desse frag­mento da so­ci­e­dade por­tu­guesa nem dá si­nais de querer saber dele: é como se, tendo um certo nú­mero de ci­da­dãos ul­tra­pas­sado uma ima­gi­nária linha etária, ti­vesse dei­xado de in­te­ressar à te­le­visão por­tu­guesa. E, con­tudo, são mais que um pu­nhado de gente: são cerca de dois mi­lhões de por­tu­gueses. Que uma sig­ni­fi­ca­tiva parte deles seja ar­re­cada em casas onde so­bre­vi­verão mais uns tempos en­quanto, cá fora, irão sendo es­que­cidos, é um fe­nó­meno so­cial pre­o­cu­pante. E por isso é im­po­si­tivo que seja lem­brado. Muitas vezes.




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