Sob Uma Bandeira – Obra poética de Joaquim Namorado

Domingos Lobo

A edi­tora MO­DO­DELER, acaba de editar, com apoio da As­so­ci­ação Pro­mo­tora do Museu do Neo-Re­a­lismo, a obra «quase» com­pleta de Jo­a­quim Na­mo­rado, poeta a que Jaime Al­berto do Couto Fer­reira chamou Herói do Neo-re­a­lismo má­gico.

Com a qua­li­dade grá­fica a que nos ha­bi­tuou o editor José da Cruz Santos, o vo­lume reúne, para além de vá­rios iné­ditos e po­emas dis­persos, o grosso da obra poé­tica que Na­mo­rado foi pu­bli­cando ao longo da vida: In­venção do Poeta; Aviso à Na­ve­gação; In­co­mo­di­dade; A Po­esia Ne­ces­sária e Zoo, para além de um vasto es­pólio que o autor en­tregou ao Museu do Neo-re­a­lismo, em fo­to­có­pias, com o tí­tulo Sob Uma Ban­deira, que deu origem e tí­tulo à pre­sente edição.

Logo em 1936, a sua po­esia já ma­ni­fes­tava fortes pre­o­cu­pa­ções es­té­ticas e so­ciais. A sua opo­sição a uma poé­tica aca­de­mi­zante, quase só pre­o­cu­pada com a forma, com o eu um­bi­lical, des­li­gada do pulsar dos dias, levou-o a aban­donar a Pre­sença e a optar pela cor­rente neo-re­a­lista que em Coimbra co­me­çava a dar os seus pri­meiros har­pejos. Esta adesão, e à ide­o­logia que es­tru­tu­rava o mo­vi­mento neo-re­a­lista, ma­ni­festa-se num dos seus pri­meiros po­emas, pu­bli­cados nos Ca­dernos de Ju­ven­tude1: Ritmo novo dos co­ra­ções/​na canção ar­dente do tra­balho/​Ritmo de má­quinas,/​de ala­vancas e de braços,/​Ritmo novo da manhã clara. Es­tava dado o sinal que a sua po­esia e o seu labor en­saís­tico, per­se­gui­riam a partir daí, se­guindo o for­tís­simo im­pe­ra­tivo ético-so­cial que a sua acção como es­critor e in­te­lec­tual pro­gres­sista ha­veria de apro­fundar até ao dia der­ra­deiro.

A abrir a co­lec­tânea In­co­mo­di­dade/​Vi­agem ao País dos Ne­fe­li­batas, alerta-nos Jo­a­quim Na­mo­rado: «Os po­emas deste livro foram es­critos nos anos de­cor­ridos de 1936 a 1943, os mais dra­má­ticos dos tempos mo­dernos, quando a muitos pa­recia vã e des­ca­bida a mais li­geira es­pe­rança». Mas, a po­esia é a arte de le­vedar a voz, e o poeta não ca­lará a in­dig­nação sobre o es­tupor dos dias, desses anos con­fi­nados entre a pér­fida di­ta­dura de Sa­lazar, a vi­o­lência as­sas­sina de Franco e o terror nazi, uti­li­zando a arma do humor, com laivos sur­re­a­li­zantes, para que a es­pe­rança so­bre­leve o sangue der­ra­mado: Deitem-me às feras do circo!// Que me im­porta/​que a mul­tidão se de­bruce das ban­cadas/​e o César obeso e de­bo­chado/​me olhe de través/​pelo óculo de es­me­raldas?!// Amanhã vou à ma­ni­cure... A re­a­li­dade dos dias, de tão ab­surda, não é dor breve, nem mansa, e fere a cons­ci­ência e a lu­cidez dos ho­mens, até ao roer da alma: En­goli des­gostos, amar­guras,/ ul­trajes, dias mal pas­sados,/​horas sem fim de so­fri­mento,/​hu­mi­lha­ções, o raio!.../​e isso me está ro­endo a alma/​nas caves da cons­ci­ência. No meio do caos, do de­gredo, das pri­sões, da morte per­cor­rendo fornos cre­ma­tó­rios, nesse chão da Pá­tria, terra do exílio, só resta ao poeta a Fá­bula de so­nhar ou­tros ventos, ou­tros dias mais limpos: No tempo em que os ani­mais fa­lavam.../​Li­ber­dade!/​Igual­dade!/​Fra­ter­ni­dade!

Na­mo­rado es­teve pre­sente nas prin­ci­pais pá­ginas cul­tu­rais e dou­tri­ná­rias que agi­taram o mo­vi­mento cul­tural do País, entre os anos 1930/​50: O Diabo, Sol Nas­cente, Al­ti­tude, Sín­tese, Li­ber­dade, Globo, Outro Ritmo, Seara Nova e Ma­ni­festo. Será um dos re­for­ma­dores da re­vista Vér­tice, 1945, e seu di­rector entre 1975 e 1981.

Numa en­tre­vista a O Jornal, em 1983, dirá: «com o Par­tido aprendi o que ao ar­tista, homem de ci­ência e de ima­gi­nação, cabe na cons­trução do fu­turo».

A este livro, a vá­rios tí­tulos no­tável e raro no nosso pa­no­rama edi­to­rial, se vale pela mostra cri­te­ri­o­sa­mente or­ga­ni­zada de uma das mais im­por­tantes vozes da nossa lí­rica con­tem­po­rânea, que urge re­des­co­brir, acresce o mo­delar pre­fácio/​en­saio de José Carlos Se­abra Pe­reira, es­tudo in­dis­pen­sável para quem queira co­nhecer e apro­fundar a obra de Jo­a­quim Na­mo­rado, que este Sob Uma Ban­deira reúne em justa, exem­plar edição.

Poeta maior do neo-re­a­lismo li­te­rário por­tu­guês, mi­li­tante co­mu­nista, de­fensor de uma ne­ces­sária re­vo­lução cul­tural, sabia com fir­meza e con­vicção, que mesmo em tempos agrestes, quando um novo obs­cu­ran­tismo nos açoita, é pre­ciso “avisar a na­ve­gação”, dizer-lhes que nada po­derá deter-nos/​nada po­derá vencer-nos.

Sob Uma Ban­deira – Obra Poé­tica de Jo­a­quim Na­mo­rado – Edição Mo­do­DeLer/​2020

___________

1Ca­dernos de Ju­ven­tude, Coimbra, Câ­mara Mu­ni­cipal, 1994, p.43 – Edição fac-si­mi­lada do ori­ginal: Coimbra, ed. de Ar­ménio Amora, 1937 – apre­en­dida pela cen­sura e PVDE logo à saída da ti­po­grafia e quei­mada no Go­verno Civil de Coimbra.




Mais artigos de: Argumentos

O direito à alegria é para todos

Os humanos não foram feitos para «confinamentos». E, pior ainda, quando uma emergência sanitária como a que está em curso acelera a vulnerabilização das condições de vida dos trabalhadores e do povo. No contexto actual, de luta pela valorização dos serviços públicos, de exigência de reforço da...

Arrecadações

Para nossa permanente inquietação, a televisão vem informando que o coronavírus continua a percorrer os quatro cantos do país, ainda que com diferenças de intensidade de região para região, e a causar danos no nosso quotidiano. Entretanto, a TV acrescenta, como aliás é seu dever, que os chamados lares de idosos são os...