O meu pão não é elegível. E o teu?

Ana Mesquita

O Ser­viço Pú­blico de Cul­tura é im­pres­cin­dível à de­mo­cracia

Tra­ba­lhar e viver das artes e da cul­tura hoje é, mais que nunca, um de­safio à pró­pria so­bre­vi­vência. É também si­nó­nimo de de­ses­pero para tantos que vivem já na de­pen­dência da so­li­da­ri­e­dade alheia. Para os que são for­çados a vender ao des­ba­rato as suas fer­ra­mentas de tra­balho para po­derem ali­mentar as bocas que têm em casa. Só que o que vi­vemos agora não é fruto da época pan­dé­mica, é mal que vem se­cando a ár­vore há muito.

Num pro­cesso de des­truição e de des­prezo do valor so­cial da arte e da cul­tura como o que vi­vemos, o pre­juízo não é só dos cri­a­dores, es­tru­turas, dos tra­ba­lha­dores da cul­tura, do te­cido ar­tís­tico e cul­tural. É do País. É de cada um de nós. E, como em tudo no sis­tema ca­pi­ta­lista, é sempre pior para os mesmos do cos­tume: os tra­ba­lha­dores e o povo.

É por isto que a exis­tência de um Ser­viço Pú­blico de Cul­tura de­vi­da­mente es­tru­tu­rado em todo o ter­ri­tório é im­pres­cin­dível à de­mo­cracia, é um di­reito de todos e é um factor de pro­gresso que tem de ser va­lo­ri­zado. O Es­tado, en­quanto ga­rante da livre cri­ação ar­tís­tica e da fruição cul­tural, tem de as­se­gurar uma forte com­po­nente de fi­nan­ci­a­mento pú­blico e de ga­rantir a in­de­pen­dência e au­to­nomia da cri­ação dos in­te­resses pri­vados ou das ló­gicas es­tritas de mer­cado. Tem, além disso, de en­carar a cul­tura como tra­balho – tra­balho com di­reitos.

Ir à raiz dos pro­blemas

Do lado das me­didas ur­gentes, é pre­ciso acorrer aos tra­ba­lha­dores que fi­caram sem ren­di­mentos e ainda não con­se­guem aceder aos apoios pre­vistos através da Se­gu­rança So­cial ou do pró­prio Mi­nis­tério da Cul­tura. Com­bater a pa­ragem das ac­ti­vi­dades ar­tís­ticas, as­se­gu­rando os meios fi­nan­ceiros para que elas possam até mul­ti­plicar e ocorrer com toda a se­gu­rança sa­ni­tária exi­gível e ade­quada ao mo­mento que atra­ves­samos, con­forme o PCP propôs e foi apro­vado em Or­ça­mento do Es­tado. Au­mentar os apoios à cri­ação ar­tís­tica, ga­ran­tindo que o re­forço or­ça­mental con­sa­grado por pro­postas do PCP chegue ao ter­reno o mais rá­pido pos­sível.

É pre­ciso também ac­tuar na raiz do pro­blema, para que as artes e a cul­tura se li­bertem da pressão ope­rada pelos grandes in­te­resses pri­vados que en­con­tram na livre pro­dução e fruição cul­tural e ar­tís­tica um obs­tá­culo ao seu pro­jeto de do­mínio eco­nó­mico e de he­ge­monia ide­o­ló­gica. Pres­sões que en­con­tram res­paldo em su­ces­sivos go­vernos que têm con­vi­vido mal com a ideia de um te­cido cul­tural vivo, crí­tico, in­ter­ven­tivo, livre e po­pular.

Se olharmos as artes e a cul­tura como um efec­tivo ser­viço pú­blico, o acesso a fi­nan­ci­a­mento dito com­pe­ti­tivo ou con­cursal deixa de fazer sen­tido. Basta de ouvir todos os anos dizer que esta com­pa­nhia de te­atro, aquele ar­tista plás­tico, ou aquela pro­du­tora ou re­a­li­zador de ci­nema são ex­cluídos do fi­nan­ci­a­mento pú­blico. Faz tanto sen­tido como dizer que este ano umas es­colas têm fi­nan­ci­a­mento e ou­tras não. Que uns cen­tros de saúde vão ter apoio ou, até sendo «ele­gí­veis», não vão. Que o pão de al­guém «não é ele­gível».

Di­reitos e dig­ni­dade

Por isso, é pre­ciso al­terar todo o sis­tema de fi­nan­ci­a­mento pú­blico à cri­ação ar­tís­tica, seja na DGARTES ou no ICA. Sim, é pre­ciso mais or­ça­mento, mas é também pre­ciso um plano e a co­ragem de con­frontar os gi­gan­tescos in­te­resses de mer­cado.

Só com me­didas de fundo em todas as áreas das Artes e da Cul­tura será pos­sível acabar de vez com a enorme pre­ca­ri­e­dade que afecta os seus tra­ba­lha­dores: dos ro­a­dies aos ar­queó­logos, dos ac­tores aos guardas e vi­gi­lantes dos mu­seus, dos téc­nicos de luz e som aos bai­la­rinos, dos mú­sicos aos téc­nicos de mu­se­o­grafia e de ser­viço edu­ca­tivo, e por aí fora, em cada uma das pro­fis­sões. Todos e cada um destes tra­ba­lha­dores me­rece ver a sua si­tu­ação dig­ni­fi­cada e os seus di­reitos la­bo­rais e so­ciais in­te­gral­mente cum­pridos.




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