A bola e o risco

Correia da Fonseca

Foi uma imagem breve e apa­ren­te­mente sem nada de es­pe­cial que a re­co­men­dasse; con­tudo, não ha­verá grande exa­gero se se disser que foi a mais no­tada, e também talvez a mais no­tória, de quantas ima­gens na­quela noite a TV trouxe a nossas casas. Eram apenas uma bola de fu­tebol, da­quelas com que se joga a sério, e um risco branco tra­çado sobre um já muito des­gas­tado rel­vado à en­trada de uma ba­liza. Mas aquela bola che­gada àquele exacto lugar po­deria de­cidir o re­sul­tado do jogo, a atri­buição dos re­gu­la­men­tares três pontos, o sabor de uma vi­tória, pelo que as ima­gens que a te­le­visão trouxe a nossas casas se tor­naram tão im­por­tantes. E não adi­anta ar­gu­mentar even­tu­al­mente que se tra­tava apenas de um jogo: é que, ao con­trário do que po­deria supor um se­le­nita des­cido hoje da lua (e ainda assim…), o fu­tebol não é apenas um jogo: é um em­pe­nha­mento in­di­vi­dual que se alarga a gentes di­versas e com elas se par­tilha, uma aposta que por vezes as­sume con­tornos in­tensos, talvez uma es­pécie de de­sa­bafo cujo des­tino é con­fiado a uma in­com­pleta dúzia de jo­ga­dores. Eram, pois, uma bola e um risco branco tra­çado sobre a relva verde, e ali es­tavam con­den­sadas an­si­e­dades e ex­pec­ta­tivas. Porque o fu­tebol é assim e não apenas nos es­tá­dios: também em casa de cada qual.

Uma es­pécie de ma­leita
Po­demos e pro­va­vel­mente de­vemos con­si­derar ex­ces­siva e por­ven­tura até não-ino­cente a pre­sença do fu­tebol nos te­le­vi­sores, isto é, em nossas casas, mas, de qual­quer modo, a emoção que um jogo de fu­tebol sus­cita nas ca­be­ci­nhas de quem o olha é um fe­nó­meno que não pode ser con­si­de­rado ir­re­le­vante. Se o fu­tebol e o in­te­resse que ele gera devem ou não ser olhados como anes­te­si­antes é questão que jus­ti­fica sus­peitas da sua «cul­pa­bi­li­dade» mas que não está lim­pi­da­mente re­sol­vida: o que pa­rece certo é que a TV tem gosto e em­penho em dar-nos fu­tebol. E nós (quase todos nós) gos­tamos disso. Desse nosso in­te­resse de­correm ob­vi­a­mente con­sequên­cias: saber se uma bola atra­vessou ou não um risco branco é questão que pode con­cen­trar dú­vidas, sus­peitas, e gerar sen­ti­mentos do­en­tios si­tu­ados à bei­rinha da paixão. É que para muitos ex­ce­lentes ci­da­dãos (e ci­dadãs) o fu­tebol, e so­bre­tudo o clu­bismo que lhe está ge­ral­mente as­so­ciado, são uma es­pécie de ma­leita de raiz viral que pode de­rivar para in­fecção num tra­jecto que não é ine­vi­tável mas contra o qual convém estar pre­ve­nido. O fu­tebol existe, é um es­pec­tá­culo ten­den­ci­al­mente em­pol­gante, mas é um jogo, e é óbvio que muito convém que não seja olhado como mais que isso e que não se trans­forme em droga ou, como muitas vezes acon­tece, em quase ex­clu­siva visão do mundo. Aí re­side um risco. Com­pete à te­le­visão, que nos for­nece doses altas do fu­tebol-es­pec­tá­culo, e mais ainda do fu­tebol-ver­bor­reia, acau­telar-se quanto a esse pe­rigo, e por isso de­fender-se. Ou mais exac­ta­mente: de­fender-nos. Porque o bola a rolar pode ul­tra­passar riscos que não são os tra­çados a branco num rel­vado verde.

 



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