Odemira, um caso de estudo: exploração e desumanidade, não!

João Dias Coelho (Membro da Comissão Política)

Já muita tinta escorreu dos escribas ao serviço dos interesses dominantes a propósito do escândalo da evolução da doença da COVID 19 no concelho de Odemira, em particular nas freguesias de São Teotónio e Almograve/Longueira, e do perigo da sua propagação.

Combater a demagogia e o populismo, o racismo, a xenofobia e o ostracismo

Mas é preciso lembrar que o facto em si é apenas a ponta do icebergue de uma realidade que se estende a toda a região alentejana e que, contendo problemas de saúde pública e falta de condições de habitabilidade, tem na sua origem o problema de fundo da exploração a que estão sujeitos os muitos milhares de imigrantes, e os trabalhadores em geral, pelas diversas cadeias (redes de tráfico humano, empresas de contratação subcontratação de mão-de-obra) e as designadas sociedades agrícolas, principais beneficiárias.

Este icebergue que se alastra a toda a região e que os diversos poderes políticos (central, regional e local) conhecem há muito, alertam-nos quer para as condições desumanas e exploração desenfreada em que vivem os muitos milhares de imigrantes que trabalham no campo, designadamente nas extensas áreas de estufas no perímetro de rega do Mira e nas zonas de monoculturas intensivas e superintensivas de amendoal e olival na zona de Alqueva, quer para o grau de concentração fundiária e dimensão de exploração da terra de forma intensiva e os impactos presentes e futuros no ambiente e nos ecossistemas.

A estranheza de alguns apenas pode ser entendida como um exercício de hipocrisia e de conivência com os interesses instalados em largas faixas dos campos do Alentejo, na medida em que, por acção do PCP, as denúncias e as preocupações atempadamente manifestadas foram ignoradas e, nalguns casos, até desvalorizadas por ministros e secretários de Estado.

É, aliás, sintomático que ao longo de anos os sucessivos governos não só não contiveram este modo de produção de culturas intensivas como as incentivaram, alargando os perímetros de exploração (como acontece na zona do Mira e de Alqueva), como fizeram vista grossa estimulando a concentração fundiária nas mãos das chamadas sociedades agrícolas – o novo capitalismo agrário –, algumas das quais pertença de fundos financeiros. É também revelador o facto de não terem desenvolvido de forma sistemática uma acção de controlo e fiscalização das condições de contratação laborais, salários, horários de trabalho e de saúde e segurança no trabalho.

 

Capitalismo predador

A triste realidade vivida pelos milhares de imigrantes que, à procura de melhores condições de vida, pululam pela região (e não só) com precariedade, baixos salários, horários sem regras, não só se veio a confirmar como a agravar, mantendo-se milhares a trabalhar e a viver em condições deploráveis e sujeitos à mais vil exploração.

Uma realidade que apenas confirma o carácter predador do capitalismo e o falhanço de um modelo assente na sobre-exploração da terra e da mão-de-obra barata, quase escrava.

Trata-se de um escândalo a que não é estranha nem a natureza de classe do Estado nem o modo de produção capitalista que o determina. Um escândalo acerca do qual nem os diversos poderes políticos nem os principais beneficiários da exploração desta mão-de-obra frágil e desprotegida podem ficar impunes, colocando-se uma vez mais na ordem do dia a exigência de uma nova Reforma Agrária.

Combatendo a demagogia e o populismo, o racismo, a xenofobia e o ostracismo, pela parte do PCP faremos como sempre fizemos: estaremos ao lado dos trabalhadores, propondo soluções (como fizemos em 2019 e 2020), defendendo os seus direitos e condições de vida e de trabalho e a produção nacional.




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