O conselho

Gustavo Carneiro

Acon­se­lhava-nos Brecht, há dé­cadas, a des­con­fi­armos do «mais tri­vial, na apa­rência sin­gelo». Dizia-nos ainda o poeta e dra­ma­turgo alemão que em tempos de ar­bi­tra­ri­e­dade cons­ci­ente e de hu­ma­ni­dade de­su­ma­ni­zada nada de­veria pa­recer normal. Acei­temos o con­selho (bas­tante ac­tual, re­co­nheça-se) e acres­cen­temos ao rol de des­con­fi­anças tudo o que hoje surja ro­tu­lado de verde, mo­derno, di­gital ou so­cial – pa­la­vras má­gicas ca­pazes de trans­formar as si­tu­a­ções mais ab­jectas ou inú­teis em algo digno de elogio. Al­guns exem­plos:

1. O re­cente en­cer­ra­mento da re­fi­naria da Galp em Ma­to­si­nhos, apre­sen­tado num em­brulho verde, pro­vo­cará a ex­tinção de cen­tenas ou mesmo mi­lhares de postos de tra­balho di­rectos e in­di­rectos. En­tre­tanto, o País con­tinua a pre­cisar de al­ca­trão, óleos base ou aro­má­ticos, que pas­sará a com­prar no es­tran­geiro, agra­vando dé­fices e acres­cen­tando aos im­pactos am­bi­en­tais da pro­dução os do trans­porte. Ga­nhos para o am­bi­ente? Ne­nhuns! Para o País? Idem! Já para os ac­ci­o­nistas será se­gu­ra­mente outra con­versa…

2. Em Ode­mira como um pouco por todo o Alen­tejo, mi­lhares de pes­soas vivem e tra­ba­lham em con­di­ções de­su­manas em ex­plo­ra­ções agrí­colas que eram, ainda há pouco, o ex­po­ente má­ximo da mo­der­ni­dade, com brand e CEO (ah, des­con­fi­emos também dos es­tran­gei­rismos), mi­lhões de fundos pú­blicos e fre­quentes vi­sitas de cor­tesia por parte de go­ver­nantes e can­di­datos a go­ver­nantes. Afinal, vai-se a ver e pouco mais são do que os ve­lhos la­ti­fún­dios, as­sentes na má­xima ex­plo­ração da energia de quem neles tra­balha e, desta feita, também dos solos e re­cursos hí­dricos.

3. Com o surto epi­dé­mico e os su­ces­sivos con­fi­na­mentos, ga­nharam ainda maior pro­ta­go­nismo em­presas – ou pla­ta­formas di­gi­tais, ou apps, o nome é à es­colha– como a Uber Eats e a Glovo, de en­trega de re­fei­ções ao do­mi­cílio, en­co­men­dadas e pagas co­mo­da­mente através de te­le­móvel ou com­pu­tador. Tudo muito prá­tico e di­gital, à ex­cepção das con­di­ções de tra­balho dos en­tre­ga­dores: sem quais­quer vín­culos ou di­reitos, con­tra­tados ao ser­viço e mal pagos, su­jeitos à ar­bi­tra­ri­e­dade doal­go­ritmo, ca­pataz sem rosto das novas praças de jorna.

4. Ter­minou há dias, no Porto, uma ci­meira da União Eu­ro­peia ape­li­dada de so­cial, onde des­fi­laram pro­messas de re­formas, tran­si­ções eme­didastambém elasmuito so­ciais. Nas en­tre­li­nhas, porém, o mesmo de sempre: sa­lá­rios e di­reitos ni­ve­lados por baixo, nor­ma­li­zação do que hoje são fla­grantes ile­ga­li­dades pa­tro­nais, mais in­jus­tiças e de­si­gual­dades.

Vol­temos a Brecht, que nos deixou ainda outro con­selho: nada deve pa­recer im­pos­sível de mudar, como aliás bem sabem os mi­lhares que no sá­bado se ma­ni­fes­taram no Porto contra essa coisa velha e suja que é a ex­plo­ração.




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