«Efeito associado»

Filipe Diniz

Um re­cente re­la­tório da Oxfam (The ine­qua­lity virus) contém dados e alertas es­sen­ciais sobre o im­pacto da pan­demia. Aponta para a zona dei­xada na sombra pela ge­ne­ra­li­zação es­ta­tís­tica. Ar­ruma de vez com a (já bas­tante fra­gi­li­zada, diga-se) lenga-lenga do «toca a todos por igual». Mostra não só como atingiu de forma ra­di­cal­mente di­fe­rente ca­madas e sec­tores so­ciais dis­tintos, mas também como os po­bres saem dela mais po­bres, e os ricos mais ricos.

En­ten­dendo jus­ta­mente «não uti­lizar raça como uma ca­te­goria bi­o­ló­gica, mas como uma cons­trução so­cial», su­blinha que «a pan­demia teve im­pactos par­ti­cu­lar­mente se­veros nas mu­lheres, ne­gros, afro-des­cen­dentes, povos in­dí­genas, e co­mu­ni­dades his­to­ri­ca­mente mar­gi­na­li­zadas e opri­midas pelo mundo fora».

In­dica que os 1000 mai­ores bi­li­o­ná­rios do pla­neta re­cu­pe­raram e su­pe­raram o seu an­te­rior nível de ri­queza em nove meses – so­bre­tudo à conta da va­lo­ri­zação bol­sista em grande parte sus­ten­tada com di­nheiros pú­blicos. Os quase 50% da po­pu­lação mun­dial que so­bre­vivem com menos de 3,5 ou 5,5 dó­lares diá­rios (dos quais boa parte mais abaixo dos 2 dó­lares do que dos 5,5, cujo nú­mero po­derá ter au­men­tado entre 200 e 500 mi­lhões em 2020) le­va­riam muito mais de uma dé­cada a «re­cu­perar» o seu nível de po­breza an­te­rior.

E não é só a pro­gres­sista Oxfam que lança este alerta. O Banco Mun­dial também o faz. E adi­anta que, «sem me­didas po­lí­ticas, a crise COVID-19 pode de­sen­ca­dear ci­clos de maior de­si­gual­dade de ren­di­mentos, menor mo­bi­li­dade so­cial entre os vul­ne­rá­veis, e menor re­si­li­ência face a cho­ques fu­turos». Não se vê, está claro, que me­didas po­lí­ticas en­ca­rará o Banco Mun­dial, um dos res­pon­sá­veis por uma si­tu­ação que, se foi bru­tal­mente agra­vada pela pan­demia, é muito an­te­rior a ela.

En­tre­tanto, um alar­gado leque de re­ac­ci­o­ná­rios por­tu­gueses par­ti­cipa na con­venção de uma coisa cha­mada Mo­vi­mento Eu­ropa e Li­ber­dade, cujo ma­ni­festo vê nas «de­si­gual­dades so­ciais e eco­nó­micas» um «efeito as­so­ciado» da in­te­gração eco­nó­mica em «mer­cados de es­cala mun­dial». Do Chega à di­reita do PS a de­ses­pe­rada vida de al­guns 50% da hu­ma­ni­dade não passa de um «efeito as­so­ciado». E é-o de facto – não do que dizem, mas da in­to­le­rável so­ci­e­dade em que estão tão bem ins­ta­lados.




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