Mikhail e a Memória

Gustavo Carneiro

Mikhail Gordon tem 92 anos e é bielorrusso. Era ainda pouco mais que uma criança quando, em Junho de 1941, foi apanhado pela invasão nazi, que lhe mataria quase toda a família e um quarto dos seus compatriotas. Oito décadas volvidas, guarda vivas memórias dos acontecimentos, que terá contado vezes sem conta na sua já longa vida.

Recorda, por exemplo, a chegada à sua cidade, pouco depois daquele fatídico dia 22, de uma unidade alemã, com dois tanques, e o discurso demasiado optimista – talvez até arrogante – do oficial: «em 14 dias estaremos em Moscovo!». Lembra-se também, claramente, do fuzilamento de 21 homens judeus, perto de um pântano, e de como os familiares só foram autorizados a enterrá-los passado uma semana. E não se esquece do choque com que recebeu a notícia da execução de jovens comunistas numa aldeia próxima, nem tão pouco da instalação da Gestapo no edifício onde antes funcionava o comité do Partido na sua cidade, dos «crimes sangrentos» ali cometidos e dos trabalhos forçados.

A prodigiosa memória de Mikhail permite-lhe recordar com precisão aquele 19 de Setembro de 1942, quando fugiu, juntamente com a família e vizinhos, para escapar às execuções em massa (por essa altura, lembra, «os nazis fuzilavam 200 a 300 pessoas de cada vez») e juntar-se à resistência. E como esquecer o 27 de Outubro, quando perdeu o pai, a mãe, o irmão mais novo, a tia e uma das primas (outra, de sete anos, sobreviveu), num cerco do qual ele próprio só por pouco escapou?

Integrado na resistência, lembra-se de fazer de tudo um pouco. Trabalhou no campo, ajudou famílias de soldados que se encontravam na frente, participou em combates, quase morreu: «fui atingido por duas vezes, na perna esquerda e no pescoço.» Do encontro da sua brigada guerrilheira com uma unidade do Exército Vermelho, em Julho de 1944, recorda a felicidade imensa que sentiu: «Durante três anos tínhamos estado sob a ocupação fascista e de repente ali estávamos, com os nossos.» Era ainda menor quando, em Outubro, foi desmobilizado e regressou a casa – se for possível chamar casa a um local onde «não havia familiares e apenas alguns conhecidos sobreviveram».

Para além das suas memórias, partilhadas em vídeo numa sessão promovida há dias pela Associação Iúri Gagárin, Mikhail Gordon deixou ainda um lamento, que é simultaneamente um alerta: «Foi derrotado o fascismo alemão, pensava eu que seria para sempre, mas afinal ainda há pessoas que tentam reacender e desenvolver o neo-fascismo (…). O que me deixa mais inquieto e indignado é que, depois de uma guerra tão sangrenta, ainda há no mundo algumas forças agressivas que continuam a agitar-se.»

Neste combate decisivo, a Memória é uma arma essencial.




Mais artigos de: Opinião

Venezuela - Solidariedade!

O imperialismo não pretende prescindir dos seus intentos e manobras contra a República Bolivariana da Venezuela e o povo venezuelano. É o que é possível depreender da declaração conjunta dos EUA e da UE, a que se associou o Canadá, tornada pública no passado dia 25 de Junho. Mantendo aspectos essenciais da política de...

Partilha de dados, negócios & NSA

O envio pela CMLisboa dos dados de promotores da «manifestação» de Janeiro aos serviços da Embaixada da Federação Russa é grave e injustificável (embora constassem no facebook), mas só persiste na agenda para provocação à Rússia e anticomunismo dos media e das classes dominantes. Esta partilha de dados deve ser...

Risco de pobreza aumentou para quem trabalha

Os dados publicados pelo Eurostat, o gabinete de estatística da União Europeia, na passada segunda-feira, ainda são provisórios, mas indicam que o risco de pobreza aumentou em Portugal em 2020, ano marcado pela epidemia da covid-19, para as faixas etárias até aos 65 anos. No que diz respeito à população em idade...

Os entrevistados

Um tem como profissão assessorar empresas a fugir aos impostos. Outro é casado com uma administradora de uma empresa, nomeada após a privatização realizada por um governo integrado pelo esposo. Outro acaba de ser nomeado administrador da empresa que mais beneficiou com a renegociação de contratos de concessão quando era...

Biodiversidade: ver a árvore e não ver a floresta

Recentemente, numa série de perguntas de um órgão de comunicação social sobre questões ambientais, um jornalista questionava a razão pela qual a proteção da biodiversidade e dos ecossistemas está fora das várias propostas apresentadas pelo Governo e partidos para a chamada Lei do Clima.