«São heróis todos os que lutam»

O pre­si­dente do Ins­ti­tuto Cu­bano de Ami­zade com os Povos, Fer­nando Gon­zález passou mais de dé­cada e meia preso nos EUA, in­jus­ta­mente acu­sado e con­de­nado por ter­ro­rismo quando, como acabou por ser pro­vado, re­co­lhia in­for­ma­ções que im­pe­diram ata­ques ter­ro­ristas contra Cuba. Como os de­mais com­pa­nheiros que com ele fi­caram co­nhe­cidos como os Cinco cu­banos, não se sente um herói e mesmo pe­rante as di­fi­cul­dades cada vez mais graves do blo­queio norte-ame­ri­cano, ma­ni­festa con­fi­ança na ca­pa­ci­dade de su­pe­ração do povo cu­bano, sa­li­entou em en­tre­vista con­ce­dida ao Avante! du­rante a Festa.

Temes que tantos anos de­pois da li­ber­tação o caso dos Cinco, en­quanto li­belo acu­sa­tório do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano, seja es­que­cido?

Do ponto de vista pes­soal não me pre­o­cupa. Quanto ao que pode re­pre­sentar en­quanto edu­cação po­lí­tica, so­bre­tudo para uma nova ge­ração de cu­banos que já cresceu quando o ter­ro­rismo contra Cuba não é tão des­ca­rado, sim. Não é im­por­tante que a nossa his­tória se man­tenha co­nhe­cida por nós, en­quanto pro­ta­go­nistas, mas como de­núncia da agenda po­lí­tica, dos ob­jec­tivos e mé­todos usados por ter­ro­ristas cu­bano-ame­ri­canos contra o nosso país.

As cir­cuns­tân­cias in­ter­na­ci­o­nais são di­versas e julgo que é mais di­fícil que grupos do gé­nero, que per­ma­necem nos EUA, montem um ataque contra Cuba nos mesmos moldes de an­ti­ga­mente. A sua men­ta­li­dade, to­davia, con­tinua. Por isso, sendo mais di­fícil, há que ter em conta que es­peram a opor­tu­ni­dade para re­pe­tirem in­ten­tonas. Até porque a frus­tração acu­mu­lada por esses grupos em re­lação ao der­rube da ordem cons­ti­tu­ci­onal cu­bana pode pre­ci­pitá-las.

Não temo o es­que­ci­mento do ponto de vista pes­soal. Ne­nhum de nós os Cinco teme. Mas a nossa his­tória é parte da re­sis­tência de Cuba e do seu povo face a agres­sões dos EUA, le­vadas a cabo também por grupos ex­tre­mistas que ac­tuam e se fi­nan­ciam a partir da Flo­rida, os quais as au­to­ri­dades norte-ame­ri­canas nunca qui­seram li­quidar.


Ge­rardo Her­nández e René Gon­zález, nas en­tre­vistas que nos con­ce­deram, dis­seram que não se sen­tiam he­róis pelo que fi­zeram. Como te sentes tu?

Custou-me muito re­ceber o tí­tulo de Herói de Cuba porque isso eu atri­buía aos grandes vultos da luta pela in­de­pen­dência e da re­vo­lução. Com o tempo e a vi­vência, com o con­tacto com pes­soas de vá­rias ori­gens e ex­pe­ri­ên­cias, per­cebi me­lhor a re­le­vância de su­bli­nhar a he­roi­ci­dade no quo­ti­diano. Não me con­si­dero um herói no sen­tido em que o são os grandes pro­ta­go­nistas dos mo­mentos que mudam a his­tória, mas con­vivo me­lhor com a va­lo­ri­zação da­queles que, como eu e os meus com­pa­nheiros, têm uma ta­refa a de­sem­pe­nhar e fazem-no com es­mero, in­de­pen­den­te­mente das con­sequên­cias para si. São efec­ti­va­mente he­róis todos os que con­tri­buem e lutam todos os dias pela jus­tiça, a li­ber­dade, a dig­ni­dade do ser hu­mano.


Dis­seste que o con­texto in­ter­na­ci­onal não é tão pro­pício a ata­ques dos grupos ter­ro­ristas anti-cu­banos, mas não des­cartas essa pos­si­bi­li­dade. Porquê?

Porque o im­pe­ri­a­lismo, e so­bre­tudo o norte-ame­ri­cano, já mos­trou, mais do que uma vez, que é capaz de qual­quer atro­ci­dade para al­cançar os seus pro­pó­sitos. Apre­sentam-se e sempre se qui­seram pro­jectar como o país mais de­mo­crá­tico do mundo, mas a ver­dade é que na Amé­rica La­tina ou em África, por exemplo, apoi­aram todas as di­ta­duras mi­li­tares, todos os golpes de Es­tado e re­gimes que se im­pu­seram contra os povos e se man­ti­veram fruto da tor­tura, da re­pressão, dos as­sas­si­natos, da guerra. Que pa­la­dino da de­mo­cracia é este?

Re­cen­te­mente mon­taram golpes contra Evo Mo­rales na Bo­lívia, Ra­fael Correa no Equador, Ma­nuel Ze­laya nas Hon­duras, Fer­nando Lugo no Pa­ra­guai. O im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano não he­sita em so­correr-se de qual­quer mé­todo para con­tra­riar o pro­gresso, em­bora estes golpes mais re­centes con­firmem que nem sempre pre­cisam de tan­ques na rua. Se con­se­guem atingir o mesmo pro­pó­sito de­ses­ta­bi­li­zador e re­tró­grado por ou­tros meios, igual­mente ile­gí­timos e bru­tais, a sua re­tó­rica de­mo­crá­tica, a sua falsa e cí­nica de­fesa dos di­reitos hu­manos, fica menos ex­posta.

Eu vivi anos num cár­cere dos EUA, nin­guém me dá li­ções sobre di­reitos hu­manos. Quantos afro-ame­ri­canos morrem nas ruas as­sas­si­nados pela po­lícia e qual é a per­cen­tagem de ne­gros nas pri­sões em com­pa­ração com os cau­ca­si­anos? No Wis­consin a po­pu­lação negra é lar­ga­mente mi­no­ri­tária, con­tudo é a mais nu­me­rosa atrás das grades. Nou­tros es­tados fe­de­rais o ce­nário é o mesmo. Existe igual­mente uma enorme dis­cre­pância nas penas apli­cadas a ne­gros e a cau­ca­si­anos.

Não ve­nham os EUA falar de di­reitos hu­manos. Não têm qual­quer au­to­ri­dade moral para dar li­ções sobre a ma­téria seja a quem for. A sua ma­ni­pu­lação dos di­reitos hu­manos tem uma larga his­tória e um pre­sente que os en­ver­gonha.

Essa falsa de­fesa dos di­reitos hu­manos, da de­mo­cracia e le­ga­li­dade in­ter­na­ci­onal é par­ti­cu­lar­mente evi­dente quando mantêm o blo­queio contra Cuba, ainda re­cen­te­mente con­de­nado pela es­ma­ga­dora mai­oria dos países na As­sem­bleia Geral das Na­ções Unidas. A pan­demia veio agravar as con­sequên­cias do blo­queio para os cu­banos?

As con­sequên­cias sempre foram se­veras, agora são muito mais. A si­tu­ação eco­nó­mica é muito di­fícil e re­sulta do efeito com­bi­nado do blo­queio e da crise sa­ni­tária mun­dial. Apesar da trama le­gis­la­tiva que ma­te­ri­a­liza o blo­queio há muitos anos, Cuba, com muito tra­balho e di­fi­cul­dades, en­con­trava vias para con­tornar o pos­sível. A ad­mi­nis­tração Trump de­dicou-se a cortar cada uma dessas vias, cada uma dessas poucas pos­si­bi­li­dades de co­mércio com com­pa­nhias es­tran­geiras, de fi­nan­ci­a­mento ex­te­rior, de abas­te­ci­mento de com­bus­tí­veis. Como co­ro­lário, co­lo­caram-nos na lista de países pa­tro­ci­na­dores do ter­ro­rismo, facto que fe­chou as úl­timas portas, de­sig­na­da­mente do ponto de vista das re­la­ções ban­cá­rias. Isto sem qual­quer prova, jus­ti­fi­cação ou ar­gu­men­tação séria.

O blo­queio é muito real na vida de todos e de cada um dos cu­banos. Mas também o é na vida dos norte-ame­ri­canos, uma vez que estes perdem muito por dei­xarem de ter acesso a me­di­cação de­sen­vol­vida por Cuba contra o cancro, para evitar am­pu­ta­ções por di­a­betes ou contra a COVID-19. Creio que se o povo norte-ame­ri­cano pu­desse saber o que perde com o blo­queio, lu­taria contra ele.

Mas o blo­queio também atinge os povos eu­ro­peus e os res­pec­tivos países, cuja so­be­rania e in­te­gri­dade são co­lo­cadas em causa pela apli­cação da le­gis­lação norte-ame­ri­cana. Mais a mais porque apesar de al­guns par­la­mentos eu­ro­peus terem apro­vado, em me­ados dos anos 90, normas que vi­savam con­tornar a extra-ter­ri­to­ri­a­li­dade do blo­queio, cada vez menos as cum­prem.


Achas que al­guma coisa pode mudar com a nova ad­mi­nis­tração do pre­si­dente Joe Biden?

Joe Biden de­clarou pu­bli­ca­mente, mais do que uma vez du­rante a cam­panha elei­toral, que não es­tava de acordo com a po­lí­tica de Trump, que pu­blicou 243 me­didas de ca­rácter eco­nó­mico e fi­nan­ceiro contra Cuba. A re­a­li­dade é que o novo pre­si­dente dos EUA não só não re­moveu ne­nhuma das me­didas como im­ple­mentou ou­tras. O que pre­tende ao dar o dito pelo não dito, ne­gando até o que pro­fessou em 40 anos, en­quanto de­pu­tado e se­nador, ma­ni­fes­tando-se sempre contra o blo­queio?


Es­tará a res­ponder à tal opor­tu­ni­dade de der­rubar Cuba ha­vendo uma con­jun­tura fa­vo­rável, uma opor­tu­ni­dade, o que de resto pa­rece co­lher entre um grupo de cu­banos?

Em Cuba houve ma­ni­fes­ta­ções de des­con­ten­ta­mento, mas não houve qual­quer ex­plosão so­cial. Pro­testos ocorrem em qual­quer país do mundo. No mesmo pe­ríodo, foram pro­mo­vidas de­zenas de ma­ni­fes­ta­ções em de­zenas de países de so­li­da­ri­e­dade com Cuba e contra o blo­queio, em­bora não te­nham me­re­cido a mesma atenção me­diá­tica. Na Amé­rica La­tina, al­guns dos pro­testos foram mesmo re­pri­midos pela po­lícia com bru­ta­li­dade, sem que isso sus­ci­tasse uma co­ber­tura por parte das ca­deias de co­mu­ni­cação se­quer pró­xima da de­di­cada a Cuba.

Em Cuba, pro­tes­taram pe­quenos grupos de pes­soas a 11 e 12 de Julho, mas es­teve muito longe de um mo­vi­mento de massas. Um desses grupos é as­su­mi­da­mente vi­o­lento, ani­mado por um nú­cleo de co­nhe­cidos mer­ce­ná­rios, gente a soldo de in­te­resses alheios à von­tade po­pular.

Ora, a pro­pó­sito de pro­testos epi­só­dicos montou-se uma cam­panha de in­to­xi­cação da opi­nião pú­blica. Trans­for­maram-se pro­testos que su­cedem em qual­quer parte do globo, numa es­pécie de le­van­ta­mento. Es­pe­ci­al­mente nas redes so­ciais, os acon­te­ci­mentos foram em­po­lados e, mais grave, foram feitos apelos ao lin­cha­mento de mem­bros de or­ga­ni­za­ções po­lí­ticas e so­ciais cu­banas. Ne­nhuma das contas que in­ci­taram à vi­o­lência, a as­sas­si­natos, onde se pu­bli­caram fotos e re­latos men­ti­rosos ou ma­ni­pu­lados – casos de um avião com Raul Castro a aterrar na Ve­ne­zuela, que cor­res­pondia a uma vi­sita de Es­tado feita há anos, ou de ma­ni­fes­ta­ções a favor do go­verno apre­sen­tadas como sendo contra –, foi sus­pensa, diga-se.

Em Cuba temos me­ca­nismos de par­ti­ci­pação po­lí­tica di­rectos. Mesmo face a graves di­fi­cul­dades im­postas pelo blo­queio, não existe ne­nhuma crise. Isto jus­ta­mente porque a ex­pressão de des­con­ten­ta­mento, a crí­tica, tem es­paço no nosso país e é en­ca­rada com nor­ma­li­dade.

Houve ma­ni­fes­ta­ções? Sim. E daí? Foram mai­o­ri­tá­rias? Não.

Há ra­zões para o des­con­ten­ta­mento e estas as­sentam nas di­fi­cul­dades co­lo­cadas pelo blo­queio? Há. Mas isso não é ne­gado por ne­nhum po­lí­tico cu­bano, pelo con­trário.


O que pode então o go­verno fazer para re­verter a si­tu­ação eco­nó­mica, agra­vada nos úl­timos anos pela ad­mi­nis­tração Trump e pelos efeitos do surto epi­dé­mico?

É muito com­plexo. A de­cisão é, desde há muito, avançar apesar do blo­queio, em­bora seja pre­ciso as­si­milar que as me­didas de di­na­mi­zação da ac­ti­vi­dade co­o­pe­ra­tiva e das micro e pe­quenas em­presas não são ime­di­atas e que um país cujos ren­di­mentos de­pendem em boa me­dida do tu­rismo foi sobre-afec­tado pela pan­demia.

Ao nosso povo, em tudo o que de­pendeu do go­verno, não faltou nada no com­bate ao novo co­ro­na­vírus. O que faltou re­sulta do blo­queio. Tanto mais que temos duas va­cinas apro­vadas pelas au­to­ri­dades in­ter­na­ci­o­nais e uma ter­ceira em fase de apro­vação. Qual é o país nas nossas cir­cuns­tân­cias que pode dizer o mesmo?

A mai­oria dos cu­banos tem con­fi­ança de que esta é mais uma fase num longo pro­cesso de re­sis­tência, de que temos con­di­ções e es­tamos a tra­ba­lhar, todos, para a sua su­pe­ração.

 

Bre­viário dos Cinco

– An­tonio Guer­rero, Fer­nando Gon­zález Ge­rardo Her­nández, Ramón La­bañino e René Gon­zález foram en­vi­ados, em me­ados dos anos 90 do sé­culo pas­sado, pelo go­verno cu­bano para a Fló­rida com o ob­jec­tivo de vi­giar grupos de ter­ro­ristas com base em Miami e um dos seus mais co­nhe­cidos men­tores e ope­ra­ci­o­nais, im­pli­cados em vá­rias ac­ções ar­madas contra Cuba. As au­to­ri­dades norte-ame­ri­canas foram in­for­madas por Ha­vana acerca de planos ter­ro­ristas e ao invés de os im­pedir, de­ci­diram prender os Cinco agentes anti-ter­ro­ristas, a 12 de Se­tembro de 1998.

– O jul­ga­mento dos Cinco durou so­mente sete meses, entre 2000 e 2001, e as sen­tenças foram pro­fe­ridas em poucas horas. Os ad­vo­gados de de­fesa en­fren­taram todo o tipo de obs­tá­culos no acesso a do­cu­mentos e ale­gadas provas, no con­tacto com os seus cli­entes, que pas­saram meses em iso­la­mento e su­jeitos a con­di­ções que con­fi­guram tor­tura.

– Em 2005, um tri­bunal de re­curso de­cidiu, por una­ni­mi­dade, anular as con­de­na­ções e or­denou que o jul­ga­mento fosse re­pe­tido noutro local que não Miami, no­tando erros graves por parte do juiz e uma clara ten­dência des­fa­vo­rável aos Cinco. As au­to­ri­dades dos EUA re­cor­reram e apesar de terem ga­ran­tido a não re­pe­tição de um jul­ga­mento, em 2009 ti­veram de rever as penas de três dos cinco an­ti­ter­ro­ristas cu­banos, também con­si­de­radas com­ple­ta­mente des­pro­por­ci­o­nadas.

– Após uma in­tensa cam­panha in­ter­na­ci­onal de so­li­da­ri­e­dade pela sua li­ber­tação e pro­nun­ci­a­mentos de de­núncia da par­ci­a­li­dade do jul­ga­mento e da in­jus­tiça das acu­sa­ções, entre ou­tras, por parte da Co­missão dos Di­reitos Hu­manos da ONU e da Am­nistia In­ter­na­ci­onal, Ge­rardo Her­nández, Ramón La­bañino e An­tonio Guer­rero foram li­ber­tados, a 17 de De­zembro de 2014. re­gres­saram ime­di­a­ta­mente a Cuba, onde já se en­con­travam Fer­nando e René Gon­zález, que já ha­viam cum­prido e su­pe­rado as res­pec­tivas penas.

 

 



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