Sorrisos e lágrimas

Sérgio Dias Branco

Os sor­risos que Charlot pro­voca vêm da so­li­da­ri­e­dade entre mar­gi­na­li­zados

Uma das obras-primas de Charlie Cha­plin faz 100 anos e re­gressa esta se­mana aos ecrãs por­tu­gueses numa es­plen­do­rosa nova cópia res­tau­rada em 4K. É uma opor­tu­ni­dade im­per­dível para (re)en­con­trar O Ga­roto de Charlot (The Kid, 1921) e o ci­nema terno e hu­ma­nista de Cha­plin.

O co­me­di­ante nasceu em Lon­dres em 1889 e cresceu num bairro pobre. Emi­grou para os EUA em 1913. A sua in­fância vincou e en­raizou a pers­pec­tiva de classe que en­con­tramos na sua obra. For­mado na tra­dição da pan­to­mima in­glesa, adaptou-se às con­ven­ções do ci­nema mudo, ini­ci­al­mente ins­pi­rado pelo có­mico francês Max Linder. A sua per­so­nagem mais fa­mosa apa­receu pela pri­meira vez na curta-me­tragem Charlot Fo­to­gé­nico(Kid Auto Races at Ve­nice, 1914). Charlot é um homem pau­pér­rimo, que vive na rua e de forma er­rante. Usa chapéu de coco, uma pe­quena ben­gala fle­xível, e roupa de­sa­jus­tada ao seu corpo, es­far­ra­pada, re­co­lhida do lixo. Exibe um pe­queno bi­gode. Anda de forma de­sen­gon­çada. Tem um jeito in­génuo de ser ca­va­lheiro. Em in­glês, era co­nhe­cido como «The Tramp» («O Va­ga­bundo»), que dá tí­tulo a um filme seu de 1915. Como es­creveu o mar­xista e his­to­ri­ador de ci­nema Ge­orges Sa­doul, «Charlot é um Max na mi­séria que pro­cura co­mi­ca­mente con­servar a dig­ni­dade». Ao rei­vin­dicar a dig­ni­dade hu­mana, expõe ao ri­dí­culo certas fi­guras que usam o seu poder e a sua po­sição para per­pe­tu­arem uma ordem so­cial in­digna.

A po­pu­la­ri­dade de Cha­plin foi acom­pa­nhada pelo re­co­nhe­ci­mento da crí­tica. O Ga­roto de Charlot foi a sua pri­meira longa-me­tragem e um dos su­cessos mais es­tron­dosos da sua car­reira nesses dois planos, jun­tando a sua graça ex­pres­siva como mimo ao seu rigor cri­a­tivo como re­a­li­zador. É uma co­média com notas de tra­gédia. Está logo no pri­meiro in­ter­tí­tulo: «Um filme com um sor­riso — e, talvez, uma lá­grima.» Ou seja, trata-se de um filme que não tem re­ceio da com­ple­xi­dade das emo­ções in­tensas. Com evi­dentes ecos au­to­bi­o­grá­ficos, narra a his­tória de uma cri­ança aban­do­nada que é aco­lhida, com al­guma re­sis­tência, e cui­dada por Charlot. O re­trato do quo­ti­diano des­venda uma re­a­li­dade so­cial muito es­tra­ti­fi­cada, entre o mundo abas­tado da mãe (Edna Pur­vi­ance) que deixa o filho por ser ile­gí­timo e o mundo des­fa­vo­re­cido onde Charlot cria o ga­roto. A mãe ar­re­pende-se da de­cisão, mas a in­fe­ri­o­ri­dade da moral da sua classe, que guiou a sua es­colha, fica pa­tente. O adulto e a cri­ança são pe­quenos cri­mi­nosos que partem vi­dros para os ar­ran­jarem a troco de di­nheiro. Apoi­ando-se no amor que os une, en­con­tram formas in­ven­tivas de viver com al­guma dig­ni­dade no exíguo e im­pró­prio apar­ta­mento onde moram.

A mes­tria do re­a­li­zador no uso de com­po­si­ções vi­suais em pro­fun­di­dade e na pre­cisão dos en­qua­dra­mentos para tornar a acção mais densa é no­tável. Os corpos e os rostos têm uma enorme ex­pres­si­vi­dade, em par­ti­cular na in­ter­pre­tação de Cha­plin e do ines­que­cível Jackie Co­ogan que faz de miúdo. A fan­tasia surge como a outra face da re­a­li­dade, não como o seu con­trário — daí Charlot acabar como um anjo caído numa de­li­rante sequência-sonho. Os sor­risos vêm da so­li­da­ri­e­dade entre os mar­gi­na­li­zados. As lá­grimas vêm das con­tra­ri­e­dades a que estão su­jeitos. O final deixa claro que os laços cri­ados não são su­fi­ci­entes para der­rubar as bar­reiras so­ciais. A raiz do pro­blema é o ca­pi­ta­lismo como sis­tema socio-eco­nó­mico de­si­gual, as­sente nas mer­ca­do­rias de troca, na pro­pri­e­dade pri­vada dos meios de pro­dução, na ex­plo­ração do tra­balho as­sa­la­riado, na acu­mu­lação de ca­pital. Por isso, quinze anos mais tarde, o ope­rário Charlot pega numa ban­deira ver­melha em Tempos Mo­dernos (Mo­dern Times, 1936).




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